Piauí

Terra sem lei

CLAUDIA REGINA SANTOS

 

Cláudia Regina Santos foi ameaçada de morte mais de cinco vezes. Ela vive no sul do Piauí, uma região chamada por forasteiros de “última fronteira agrícola” do Cerrado. Por trabalhar há mais de 20 anos defendendo os direitos das comunidades rurais, Claudia tem a vida marcada pelos conflitos agrários que envolvem sua região

Ela nasceu e se criou entre Bom Jesus e Currais, municípios pequenos localizados a cerca de 700km da capital Teresina. Conhecido por suas terras férteis e águas abundantes, o lugar é muito cobiçado por plantadores de soja e tradings internacionais que compram terras agricultáveis no Brasil.

A região é considerada uma das principais para o avanço da soja no país e o município de Bom Jesus atualmente está entre os dez que mais produzem o grão no Matopiba Matopiba é uma área específica do cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. . Segundo um estudo da Universidade Federal de Goiás, entre 2007 e 2015 foram desmatados em Bom Jesus quase 50 mil hectares – área que equivale a 50 mil campos de futebol oficiais. Cerca de 80% dessa área foi convertida em lavouras de soja ou outros cultivos anuais.

 

Entre os anos 2000 e 2014 o cultivo de soja dobrou no país, sendo o principal fator responsável pela expansão da área agrícola sobre o cerrado, que neste período aumentou em 87%. Os dados sobre a expansão da soja revelam que na região do Matopiba a soja aumentou ainda mais: cerca de 253%. Na prática, as áreas convertidas em lavouras de soja quadruplicaram, e a maior parte dessa expansão ocorreu sobre a vegetação nativa. Como aconteceu em Bom Jesus, a paisagem se transformou.

O território do município, permeado por comunidades sertanejas antigas, vive hoje um imbróglio de posses e títulos de terra que frequentemente resulta em conflitos. Foi lá que em 2008 aconteceu um dos conflitos mais violentos do estado, uma história que até hoje faz Claudia chorar quando conta.

“Aqui é terra sem lei.
Como dizem: manda quem pode, obedece quem tem juízo”

Claudia Regina Santos

Era início de maio quando Claudia, na época uma liderança no Sindicato do Trabalhadores Rurais, recebeu a notícia de que as famílias de uma pequena comunidade tinham sido violentamente expulsas de suas terras por um homem que se dizia dono da área. A comunidade Sucruiú, um bairro isolado que fica a 140km do centro do pequeno município, já vinha sofrendo com tentativas de invasão há anos. Na Justiça, a comunidade havia ganhado uma ação contra Abrão Ildeu da Silva, o homem que afirmava ter comprado a área. “Mas aí, mesmo depois do juiz dar a causa pra nós, ele entrou na Justiça de novo e voltou”, conta o morador Antônio James.

No dia 8 de maio, Abrão chegou na comunidade acompanhado por um oficial de Justiça, quatro policiais e um trator de esteira. Claudia conta que os moradores foram forçados a saírem de suas casas e assistirem o trator passar por cima de suas moradias. “Só não mataram trabalhadores porque eles saíram das casas. Naquele momento tiveram que escolher entre perder a casa toda ou perder a vida”, lembra.

Além de derrubar as casas, Claudia conta que funcionários do grileiro destruíram as plantações e jogaram veneno nos brejos para contaminar a água. “As famílias perderam tudo, foram expulsas mesmo”.

Após o ataque, representantes do sindicato e da Pastoral da Terra foram até a comunidade para fazer um levantamento das perdas e resgatar as famílias que estavam ao relento. Perto das 19h30, no caminho de volta para a cidade, depararam com uma barreira na estrada. “Eu vi que tinha uma luz e sugeri voltarmos. Como lá não tinha energia elétrica, estranhei. O machismo venceu neste momento e nós não mudamos de caminho. Sofremos as consequências”, lembra Claudia com a voz embargada. “Tinha muito jagunço”.

A primeira camionete foi atacada. Furaram os pneus e começaram a bater nas pessoas. A carroceria estava cheia de moradores: crianças, adolescentes, pessoas de idade. Um bebê de nove meses teve a clavícula quebrada. Um cinegrafista amador que acompanhava a ação teve o material destruído, foi espancado e preso. Algumas pessoas apanharam de bastões de madeira. “Foi muita barbaridade, as pessoas tentando fugir pelo mato e eles atirando. Todo mundo correndo e bala vindo, vindo”, conta Claudia.

Naquela noite, por sorte, não morreu ninguém. “Mas não foi um conflito sem óbitos, eu costumo dizer. Porque uma grávida que teve a casa destruída desmaiou, quase não voltou, passou uma gravidez toda doente e faleceu no parto”, lamenta Claudia. Para ela, a casa das pessoas é o que há de mais sagrado. Diz: “uma mulher que morreu com seu sangue derramado por um pedaço de chão que sempre foi negado a ela”.

Claudia conta que na época fizeram boletins de ocorrência, relatos da violência e até discutiram o assunto com a Secretaria de Justiça do estado. “Mas foi só discutir mesmo porque nesses anos todos nenhuma audiência jamais foi feita”. Anos depois, descobriu que nenhum processo circula na comarca de Bom Jesus sobre os ataques.

Após o conflito, o Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) assentou oficialmente, em 2012, as famílias na área disputada. A comunidade Sucruiú virou Assentamento Rio Preto. Mas passados 12 anos desde os ataques, as 41 famílias ainda vivem o medo de perder tudo outra vez. Em junho de 2019, dois homens operando tratores de esteira invadiram o assentamento e ameaçaram destruir tudo. Apesar de o assentamento ser oficial, os moradores seguem ameaçados. “Como nada foi feito na Justiça eles continuam aí aperreando até hoje”, diz Claudia. Segundo ela, o grileiro que reivindica a terra e promoveu os ataques planeja usar a terra para plantar grãos e trabalhar com pecuária.

“Acontece no Piauí todo: o agronegócio pressiona e o poder público não protege”

Claudia Regina Santos

O caso do assentamento Rio Preto é uma história que ilustra outros conflitos semelhantes que se repetem no território piauiense.

As disputas de Bom Jesus também têm características comuns a outras disputas agrárias em fronteiras agrícolas do Cerrado. De um lado estão posseiros que sempre viveram na região, cultivando pequenas roças e criando o gado solto nos chapadões – terras que muitas vezes nunca tiveram cercas nem documentos. Do outro lado, fazendeiros que chegam à região com o objetivo de preparar a terra para a monocultura ou criação de gado.

Quando os lados se encontram, o conflito emerge: fazendeiros se afirmam donos das terras onde vivem as comunidades, os moradores tradicionais se negam a sair, decisões judiciais se arrastam, os ânimos se exaltam e a violência aparece. Segundo a base de dados de conflitos agrários Latentes, em 2019 o Piauí tinha 112 focos de conflitos socioambientais, sendo 108 em locais onde estão estabelecidos assentamentos. Somente no entorno de Bom Jesus, a Pastoral da Terra catalogou 27 locais em disputa.

No Matopiba “não se sabe exatamente o quanto dos títulos de propriedade atuais são integralmente legais e quantos apresentam um passível questionável juridicamente”, aponta pesquisa feita na região pelo Greenpeace. A grilagem de terras A grilagem é a tomada de posse de determinada área de terra por meio da falsificação de documentos. O termo vem da descrição da prática antiga de envelhecer documentos forjados usando grilos para transparecer posse. , a falta de documentação e o interesse crescente do agronegócio na região afetam as pessoas que vivem nela há dezenas de anos.

POTE DE OURO

O Matopiba reúne grande parte do que resta do Cerrado no Nordeste. Atualmente, é uma das regiões mais cobiçadas pelo agronegócio e talvez seja o maior trunfo recente das empresas que trabalham com agricultura mecanizada voltada para exportação. Entre 2000 e 2014, a área de soja aumentou de 1 milhão para 3,4 milhões de hectares, um crescimento de 253% no período. Toda essa produção é muito concentrada, não somente em termos regionais, mas também nos grupos sociais compõem a estrutura agrária do Matopiba.

 

As terras planas, os chapadões afastados dos grandes centros, o subsolo rico em água e um suposto “vazio demográfico” tornaram a área atrativa. A ocupação mais recente da região se apoia na ideia de que o Cerrado é um bioma que pode ser devastado para “dar lugar à produção”.

Nas décadas de 1970 e 1980 foram implantadas rodovias na região e foi lançada a segunda fase do Prodecer – o Programa Nipo-brasileiro de Desenvolvimento dos Cerrados – para incentivar a produção de soja para exportação. A segunda fase do programa inaugurou a expansão da fronteira agrícola para o Nordeste, onde as terras eram muito mais baratas. Assim, a partir de incentivos governamentais, fazendeiros de outros estados chegaram ao Matopiba.

No Piauí e nos arredores do município de Claudia, forasteiros começaram a chegar com mais força a partir dos anos 1990. O processo de transformar paisagens nativas em lavouras, principalmente de soja, se estendeu com intensidade entre os anos 2000 e 2015. Foi exatamente ao final desse período que a então presidente Dilma Rousseff assinou um decreto que delimita oficialmente a área e prevê ações voltadas à expansão da soja na região.

Hoje, é o interesse de empresas e de fundos de investimentos estrangeiros que chama atenção: as terras são compradas e vendidas como ativos financeiros. Para o pesquisador Arilson Favareto, o que diferencia os casos de conflitos no Matopiba de outras realidades nacionais, como a Amazônia, é que na região a apropriação das terras envolve cada vez mais a presença de empresas transnacionais. Em um livro, ele explica que se trata de um processo global de land grabbing, intensificado a partir de 2008 por fundos de investimento e empresas do setor agroindustrial interessados nas terras de países em desenvolvimento.

A LUTA PARA SOBRIVIVER

Na opinião de pesquisadores, as consequências são dramáticas para populações tradicionais que perdem o acesso ao meios que garantiam a segurança alimentar – pastos para soltar gado, áreas para extração de frutas e zonas de plantio. Além de também sofrerem com o ressecamento geral do ecossistema e diminuição de chuvas.

Cláudia conta que na sua região os calendário agrícolas estão alterados. Ela percebe as mudanças climáticas há pelo menos cinco anos. “Passamos anos sem chuvas de verdade. E agora quando ela veio, desequilibrada, foi forte demais, desceu em enxurrada e até rompeu uma barragem”.

Além dos impactos ambientais, o modelo de produção agrária que toma conta do Matopiba não produz melhorias nos índices sociais das áreas onde se instala. Na prática, os resultados da alta produção não aparecem na vida da população local: municípios que batem recordes em produtividade agrícola tem índices sociais abaixo da média nacional.

Segundo um estudo que analisa a produção de soja no Matopiba, onde a produção do grão cresceu, o PIB per capita aumentou mas os indicadores de saúde (aumento da taxa de mortalidade infantil e diminuição no número de médicos por 10 mil habitantes) pioraram. A renda gerada pela produção não se distribui pela sociedade local, por conta da concentração fundiária, e as pessoas mais pobres permanecem fora do mercado, sem acessar novas oportunidades que poderiam gerar desenvolvimento local.

Para Claudia, que segue na vida política em defesa das comunidades rurais tradicionais, o sonho é ver as pessoas com uma condição digna de vida. “Sonho com uma terra que tenha justiça”.

“É melhor morrer aqui, nem que seja num conflito, do que ir passar fome na periferia de uma grande cidade”

Claudia Regina Santos