Tocantins

Experiência de Coexistência

ANA MUMBUCA

 

Quando chega a noite o encontro é ao redor da fogueira. Quem vive na comunidade quilombola Mumbuca é acostumado com batata e mandioca assada, alguém tocando viola de buriti ou puxando uma conversa séria ao redor do fogo. No meio do Jalapão, o convívio coletivo faz parte da rotina da comunidade tradicional que há mais de 200 anos vive no Cerrado de Tocantins.

“Viver junto é ancestral pra nós. Vivemos junto com os sapos, com os macacos, com o Cerrado, com nossas famílias”, define Ana Mumbuca. Ela tem 31 anos na vida real, mas 33 no documento por conta de um erro quando seu pai foi registrá-la quando ela tinha 13 anos de idade.

A confusão guarda um significado: “Os mumbucas não precisavam de papel”, escreve Ana em sua dissertação de mestrado. No texto, ela explica a distância entre o modo de vida de sua comunidade e os registros institucionais, escritos, do país. “Nos cartórios não tem documentos sobre nós, nos livros não existem as nossas histórias”, afirma. Por gerações e gerações a vida da Mumbuca foi registrada na fala.

“Temos outra lógica do tempo, temos a lógica dos acontecimentos e não
de calendários ocidentais.” Para Ana, a matriz que orienta seu pensamento vem de lógicas africanas e indígenas, mais conectada a fatos e passagens. Os anos são identificados como “o tempo da grande chuva de granizo” ou “a época em que a lagoa Bilau secou”. A forma de ver o tempo se reflete no jeito peculiar de levar a vida em Mumbuca.

“No dia a dia vivemos a arte do sossego. Um cuidando do outro”

ANA MUMBUCA

A tranquilidade provém, em parte, da relação com o ambiente que cerca a comunidade. A Mumbuca fica no Jalapão: um oásis de águas cristalinas em uma região de clima semiárido.

Nessa porção leste de Tocantins, a paisagem do Cerrado é marcada por dunas, chapadões, planícies onde se formam lagoas e correm rios de água potável. A beleza e abundância de recursos naturais da área, pouco afetada pela devastação humana, impressiona. E nutre o estilo de vida bem específico dos 17 núcleos quilombolas que habitam o Jalapão.

Ao longo de gerações, as comunidades tradicionais ali desenvolveram sistemas agrícolas específicos para produzir de forma integrada ao Bioma. Junto das colheitas de frutos e criação de animais, isso mantém as famílias e a natureza em equilíbrio.

REMANDO NA AREIA

Os antepassados de Ana aprenderam a manejar o solo arenoso para conseguir cultivar roças. As técnicas desenvolvidas na região, chamadas de Roças de Esgoto ou de Rego, têm sido estudadas nos últimos anos por pesquisadores como Ludivine Eloy, ligada à Universidade de Brasília e ao Centro Nacional de Pesquisa Científica da França.

Em alguns artigos, ela demonstra que a produtividade das roças de esgoto é alta e explica como o sistema de drenagem desenvolvido pelas populações locais permite que as famílias produzam alimentos durante todo o ano. “Com meio hectare de cultivo é possível alimentar uma família de 10 pessoas por 10 anos, a partir dessas técnicas”, aponta Ludivine. Além das técnicas sofisticadas de drenagem do Jalapão, ela destaca as experiências de variedades de cultivo de arroz dos Kalungas de Goiás.

A pesquisadora explica que a população local tem um conhecimento profundo e refinado sobre a dinâmica ambiental do espaço onde vive, aperfeiçoando os sistemas agrícolas ao longo dos anos. “Existe todo um patrimônio agrícola dos quilombolas do Cerrado que permanece desconhecido, invisibilizado”, diz.

Na comunidade Mumbuca, os roçados tradicionais garantem a base da alimentação, que é complementada pelos produtos comprados no supermercado ou coletados na natureza. “Quando a gente mata uma paca pra comer, sabemos a hora, a forma. Não é de um jeito que agride o meio ambiente”, comenta Ana Mumbuca.

Em uma pesquisa, Ludivine mostra também como o uso tradicional do fogo integra o processo de produção agrícola e manutenção ecológica em biomas savânicos, sem causar prejuízos ambientais. E esse é um ponto de atrito na relação entre populações rurais e áreas de proteção ambiental.

Desde 2001, uma parte da região virou o Parque Estadual do Jalapão, uma unidade de conservação de proteção integral. Na prática, isso significa que a área demarcada é uma área de preservação ambiental, controlado pelo governo. Junto com o decreto, que garante proteção ao oásis das águas, apareceram obstáculos na vida das comunidades que já viviam lá. “Desconsideraram nossa existência, criando a Unidade de Conservação sem consulta pública, sem falar com a gente”, diz Ana. Nessa época, as comunidades chegaram a ser multadas por arar partes da terra para fazer roças ou fazer a queima de áreas de veredas, usando o fogo na agricultura.

O imbróglio se estendeu até em 2012, quando um Termo de Compromisso firmado pelo ICMBio O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) é um órgão ambiental do governo brasileiro. e a associação representante dos moradores que vivem dentro e ao redor da UC regulamentou o uso do fogo e outras práticas agrícolas. Para Ludivine, a raiz do conflito entre as medidas de proteção ambiental do governo e as comunidades era a lacuna de conhecimento científico sobre os impactos ecológicos de atividades agrícolas não mecanizadas e de pequena escala em áreas de veredas no Cerrado.

Com o Termo de Compromisso, as comunidades foram ouvidas e, segundo Ana, criou-se uma nova mentalidade. “Quando o parque chegou, dizendo que íamos ter que sair, imagina, a gente nem sabia o que era um parque”, lembra. Era difícil na época entender como as regras, descritas em decreto, na verdade já faziam parte do cotidiano das comunidades. “Mas hoje aprendemos a conviver, nós e o parque. Percebemos que é possível coexistir”, analisa.

Atualmente, o Jalapão têm um mosaico de diferentes modelos de unidades de conservação. Além do Parque Estadual, existe o Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba, as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) Serra da Tabatinga e Jalapão, e a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, uma das maiores unidades deste tipo no país.

 

MEDO DE PASSAR SEDE

A conservação é um conceito importante, que cada vez mais paira sobre a região do Jalapão. Isso porque ao longo da última década as populações locais vêm testemunhando mudanças no ambiente e no clima.

“Rios que costumavam ser perenes agora desaparecem”, conta Ana. Por lá, a água está no centro das preocupações. Nos entornos da Unidade de Conservação, as áreas baixas estão ficando mais secas e nascentes mudam de lugar.

“Há um ressecamento geral do ecossistema que, na minha opinião, não dá para atribuir somente à diminuição das chuvas”

ludivine eloy

A paisagem do leste de Tocantins, como do oeste da Bahia tem sido transformada em áreas de expansão do cultivo de monocultura, sobretudo de soja. O avanço da fronteira agrícola sobre o Matopiba atrai empresas do agronegócio e preocupa comunidades locais e estudiosos.

Atualmente, a expansão da soja nessa área depende de sistemas de irrigação. Ludivine aponta que a irrigação mecanizada, utilizada nas grandes lavouras gera um impacto forte sobre todo o ciclo hidrológico da região. “São comunidades que sofrem com consequências ambientais extra-territoriais, então é difícil”, diz.

Mateiros, o município onde fica a comunidade de Ana, faz divisa com o estado da Bahia na região do entorno de Luís Eduardo Magalhães, município apelidado de “capital do agronegócio”. Em toda essa parte do Matopiba a preocupação com água tem sido a tônica.

Em Correntina, cidade próxima no oeste baiano, os conflitos por água ganharam contornos dramáticos depois que as águas do principal rio que alimentava a região começaram a ser captadas por empresas. Lá, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) concedeu à uma fazenda Igarashi o direito de retirar do rio Arrojado o equivalente a 106 milhões de litros de água por dia. A quantidade seria suficiente para abastecer uma cidade de 30 mil habitantes por um mês, disse em uma reportagem Cleidiane Barreto, liderança de uma das comunidades que estava sofrendo com a seca após a outorga de uso concedida à empresa.

As comunidades tradicionais do oeste da Bahia chamadas de Fundo ou Fecho de Pasto têm um sistema agrícola parecido com o dos quilombos do Jalapão. “É um mecanismo de irrigação centenário, no qual rios são drenados para canais, os chamados regos, que vão passando entre as casas, garantindo água para as roças”, explica Ludivine.

Nessa porção do Cerrado, já bastante cercada pela soja, dezenas de famílias ficaram sem a água do rego nos últimos anos. No caso do município de Correntina, para tentar resolver os conflitos, o Ministério Público baiano defende a suspensão de novas outorgas –- autorizações oficiais para uso de água – e a revisão das já concedidas, com atualização dos critérios técnicos para concessão.

Na opinião de Ludivine, o aumento das outorgas para uso dos recursos hídricos nas lavouras está na base dos conflitos nas partes de Cerrado tanto da Bahia como do Tocantins. Com a retirada de água, acontece um rebaixamento no lençol freático e a migração das nascentes.

“Muitas vezes, as comunidades não têm os meios para comprovar os nexos causais entre a falta de água em seus territórios e a utilização da água na irrigação da soja”, aponta.

O impacto futuro do agronegócio nessa região de Cerrado ainda é desconhecido. Mas um temor toma conta de moradores do Jalapão, que dizem com frequência que “não dá pra saber se os rios que conhecem existirão daqui a 10 anos”.