Mato Grosso do Sul

A Expansão da Monocultura

PRETA

 

No meio do pasto crescem árvores que dão frutos. No assentamento Andalucia, a vegetação nativa resiste em meio à criação de gado. A imagem, rara nas pastagens sul-matogrossenses, é comum na comunidade de Rosane Sampaio. “Aqui a gente sabe que tirar todas as plantas para fazer pasto não é o melhor. Aprendemos os benefícios do mato”, explica. Conhecida como Preta, ela é uma referência no conhecimento de práticas sustentáveis para comunidades rurais de Mato Grosso do Sul.

Preta vive em um assentamento de reforma agrária, conquistado por ela e mais 163 famílias junto ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) há 24 anos. Hoje, o Andalucia é conhecido por ser um núcleo de desenvolvimento sustentável do Cerrado. Lá, Preta lidera o Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado, uma espécie de laboratório que ajuda famílias agricultoras na geração de renda.

Nascido de um grupo de mulheres, o Centro atualmente conta com instalações para beneficiamento coletivo de frutos e castanhas, organiza formações sobre extrativismo para outras comunidades e funciona como um espaço de fortalecimento político feminino. “Buscamos desenvolver métodos para conseguir um ‘dinheiro novo’, formas de agregar a renda das famílias aproveitando o que nossa terra dá”, explica Preta. “Mas não foi sempre assim. Antes, não tínhamos esse conhecimento das práticas sustentáveis”, diz ela. Como exemplo, conta que o costume das famílias agricultoras da região era limpar toda a área que serviria de pasto. “O modelo era tirar todo o mato porque ‘mato é feio’”.

Preta explica que seu próprio pensamento começou a mudar no início do processo de assentamento. “Fomos muito agraciados naquele momento porque um projeto da Universidade [Federal do Mato Grosso do Sul] começou a nos acompanhar, trazendo a questão ambiental e ideias para um ‘agir diferenciado’”. O projeto de extensão universitária levou apoio técnico e cursos às famílias recém-assentadas. Preta conta que foi um despertar para a comunidade.

“Começamos a desenvolver as técnicas do extrativismo, percebendo como precisávamos fazer para ser sustentável”, diz. Ao longo dos anos e das safras, as famílias do Andalucia aprimoraram seu modelo de coleta de frutos nativos do Cerrado e condensaram os conhecimentos em um Manual de Boas Práticas escrito coletivamente. O texto explica, por exemplo, como medir a quantidade de frutos que se deve deixar na árvore para alimentar os animais e, posteriormente, a terra. E também descreve quando começar a colheita e a importância de não coletar mais de 70% dos frutos.
“A comunidade hoje tem a expertise”, diz Preta. Em 2020, a agroindústria de beneficiamento de frutos nativos que integra o Centro de de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado tem 35 toneladas de Baru armazenadas. Isso corresponde a 1.700 quilos das castanhas que são o carro-chefe do do extrativismo do Andalucia.

“A agricultura familiar é um tesouro, uma joia que está dentro de um baú e que os governantes precisam ainda descobrir para perceber a potencialidade que existe nos assentamentos”

PRETA, ROSANE SAMPAIO

O Baru é nativo do Cerrado e compõe a alimentação de populações rurais do Planalto Central tradicionalmente. Dentro de cada fruto de casca grossa tem uma castanha rica em minerais e vitamina E. Depois de descascada e torrada pode ser comida pura ou em receitas. O gosto é mais suave do que o amendoim e a consistência lembra a cremosidade oleosa da castanha do pará.

Mas a coleta dos frutos do Baru não é a única atividade geradora de renda no assentamento. As famílias também trabalham com gado para leite, corte e agricultura.

Atualmente, as mulheres agroextrativistas do assentamento integram a Cerrapan, uma rede de articulação de mulheres produtoras do Cerrado e Pantanal que existe há quatro anos. Juntas, produtoras de oito comunidades rurais dos dois Biomas desenvolvem estratégias de manejo sustentável e comercialização de frutos nativos.

Bocaiúva, laranjinha-de-pacu, jaracatiá e baru são alguns dos frutos colhidos, beneficiados e que têm chegado a novos mercados. Ao longo dos últimos anos as comunidades agroextrativistas criaram novas receitas e alternativas para comercialização. Com apoio de grupos da área de nutrição e engenharia alimentar da Universidade Federal do estado, aprimoraram técnicas de beneficiamento produzindo geléias, polpas e outros produtos com maior valor agregado.

 

Bocaiúva (ou Macaúba)
(Acrocomia aculeata)

Polpa rica em Betacaroteno, fonte natural de vitamina A, Cobre, Potássio e Zinco. Tem ação antioxidante, é rica em Ômega 3, 6 e 9.

Pode ser consumida in natura ou derivados do fruto: da polpa surgem doces e molhos; a farinha enriquece pães e massas; da castanha vem doces e um rico azeite.

 

Laranjinha-de-Pacu (ou Moranguinha)
(Pouteria glomerata (Miq.) Radlk.)

Rica em vitamina C, Ferro e Cobre, é utilizada popularmente no combate ao envelhecimento.

Tem perfume agradável, suave e adocicado, com sabor azedo Pode ser consumida in natura e a polpa usada em sucos, sorvetes e geleias.

 

Acuri (ou Bacuri)
(Attalea phalerata Mart. ex. Spreng.)

Rica em pró-vitamina A, Cobre, Magnésio e Potássio, que auxilia no controle da pressão arterial e na prevenção de doenças cardíacas.

Tem sabor levemente adocicado e sua farinha tem potencial de substituir a farinha de mandioca em vários pratos: mingau, pirão, para empanar carnes e peixes.

 

Jaracatiá
( Jaracatia corumbensis Kze.)

Rica em vitaminas A, C e E, Cobre, Magnésio e Potássio, é fonte de fibras e auxilia na digestão, fortalecendo o sistema imunológico e combate o envelhecimento.

A textura do fruto se assemelha a do mamão verde, e é utilizado na preparação de doces em calda, rapaduras e geleia.

Além de ser um estímulo para a autonomia econômica das mulheres, a Cerrapan funciona também como um mecanismo de fortalecimento das comunidades na luta por melhores condições de vida. A rede de produtoras busca marcar presença nos espaços de discussão de políticas públicas e potencializar a voz das comunidades rurais. No município de Corumbá, por exemplo, representantes da rede integram a Comissão Intersetorial de Saúde das Mulheres, vinculada à gestão local do SUS.

UM PONTO FORA DA CURVA

A articulação da Cerrapan no Mato Grosso do Sul ajudou a viabilizar novas possibilidades na produção e geração de renda aliada a conservação ambiental, no estado. “O Andalucia é um exemplo de como o suporte técnico faz diferença”, diz Nathalia Ziolkowski, socióloga que trabalha com grupos de mulheres rurais no Mato Grosso do Sul, através da ONG Ecoa. Segundo ela, no geral, as comunidades rurais enfrentam um cotidiano de desassistência. Afastadas dos serviços públicos por estradas precárias, têm dificuldade de acessar auxílios governamentais.

“Cada território tem suas peculiaridades, claro. Mas de forma geral, aqui no Mato Grosso do Sul todos sofrem com uma coisa comum: a ausência do Estado”, aponta. Na opinião da socióloga, falta apoio técnico para comunidades que buscam desenvolver outros modelos de produção. Rodeadas por pastagens de gado para corte ou lavouras de grãos que seguem o modelo agroexportador hipermecanizado, as comunidades veem com poucas opções de geração de renda em pequenas propriedades.

A FLORESTA PLANTADA EM SÉRIE

O Mato Grosso do Sul é um estado voltado para o campo. Segundo dados do IBGE, 85,54% de sua área é ocupada por estabelecimentos agropecuários. Em 2019, Mato Grosso do Sul foi o segundo maior produtor de carne bovina do país, o quarto maior em produção de milho e o quinto maior em soja. Segundo um relatório elaborado pela Federação de Agricultura e Pecuária do estado, nos últimos cinco anos o perfil produtivo agropecuário vem crescendo de forma acelerada. O aumento verificado na produção de grãos e carne provém da maior profissionalização do setor e de novos formatos de ocupação do solo via tecnologia aplicada, aponta o documento. Os recordes de produtividade que têm sido obtidos demonstram o incentivo para a produção em larga escala voltada à exportação.

Entre os que buscam o mercado estrangeiro, o Mato Grosso do Sul se destaca no cultivo dos chamados “Produtos Florestais”, cuja exportação cresceu 84,8% entre 2015 e 2019. O levantamento oficial mais recente, feito pelo IBGE em 2017, aponta que as áreas de “floresta plantada” aumentaram 862% ao longo dos últimos 10 anos sendo o eucalipto a principal variedade cultivada. Principalmente desde 2006, verifica-se um investimento na produção de madeira para celulose na porção leste do estado – justamente a área que concentra remanescentes do Cerrado.

No Brasil, de maneira geral, a silvicultura de eucalipto se expande sobretudo em cima desse Bioma. Segundo dados do último mapeamento oficial do Ministério da Agricultura, cerca de 1,5% do Cerrado foi transformado em plantações de florestas, em sua maioria de eucalipto.

Pesquisadores se mostram preocupados com a introdução da monocultura do eucalipto nas áreas remanescentes de Cerrado. Os principais questionamentos se relacionam com os impactos desse cultivo em processos de ressecamento e desertificação do solo, assoreamento dos cursos dos rios, comprometimento do lençol freático e perda de biodiversidade.

Além dos impactos ambientais, elencados por várias pesquisas, preocupações sociais têm sido atreladas à monocultura do eucalipto. Um artigo que analisa a expansão da silvicultura sobre o Cerrado maranhense registra profunda insatisfação da população rural local com a chegada das florestas formadas por árvores de uma espécie única. Na região, como consequências da atividade a população relata assoreamento dos rios, enfraquecimento das nascentes de água e dificuldade de manutenção da cultura local – impactos que recaem sobre a segurança alimentar e bem estar social.

OS CAMINHOS FUTUROS

No Mato Grosso do Sul, as atividades de monocultura – não apenas de eucalipto – seguem em expansão, contando com incentivos governamentais. Por outro lado, a produção de alimentos por pequenos produtores sofre com uma situação de calamidade, aponta a agricultora e agroextrativista Preta.

“A agricultura familiar vêm enfrentando uma pandemia de descaso há muito tempo.”

PRETA, ROSANE SAMPAIO

Para Nathalia, socióloga que acompanha comunidades rurais no estado, até existem planos de fomento à produção familiar orgânica, por exemplo. Porém, são iniciativas que muitas vezes não saem do papel. “Percebemos que essas políticas são sucateadas e as equipes não têm estrutura”, aponta. A pesquisadora considera que falta um olhar focado na sustentabilidade que não se resuma à produção de boi orgânico no Pantanal – projeto em expansão.

Mas, em alguns lugares como no assentamento Andalucia, a falta de assistência técnica dá lugar a inovação e esperança. Para Preta, há sinais também positivos: “a sociedade está se abrindo mais para produtos saudáveis, frutos de verdade”. E as famílias agroextrativistas buscarão suprir e fortalecer a demanda pelos frutos do Cerrado que geram renda e ajudam o Bioma a permanecer de pé.