Minas Gerais

A primeira fronteira agrícola

CÉLIA XACRIABÁ

 

Célia Xacriabá acorda junto com o sol. Levanta e logo olha pra fora: gosta de ver o dia chegando. Cintilando em cor-de-rosa, um Ipê está florido bem do lado de seu quarto. Célia tira uma foto da árvore colorida, compartilha nas redes sociais e escreve na legenda “ao amanhecer, o Cerrado”.

Ver o Ipê ali pertinho gera uma sensação boa. A árvore é um símbolo de que ela está em casa. No seu território, no seu lugar de pertença – como gosta de dizer. Célia é indígena da etnia Xacriabá. Faz parte da população que habita a região norte de Minas Gerais há mais de 500 anos. Compara seu povo com a paisagem de sua região para explicar que, assim como as árvores do Cerrado, suas raízes são muito profundas. Para Célia existe um paralelo entre a resistência dos povos do tronco linguístico Macro-jê, originários da região central do Brasil, e a força das raízes da vegetação do Bioma no qual vivem integrados.

Atualmente, os Xacriabá vivem nas bordas do Cerrado mineiro, uma região plana, com árvores retorcidas, perto de onde a paisagem começa a ressecar e virar caatinga. Originalmente, viviam mais perto das margens do Rio São Francisco, mas ao longo dos anos foram empurrados para os arredores mais secos.

A importância do rio na história dos Xacriabá é central. Célia conta que a palavra que nomeia seu povo significa “bons de remo”. Vivendo nas margens do grande rio que nutre o nordeste, seus antepassados eram conhecidos por serem exímios remadores. Hoje, longe das águas, Célia conta que as pessoas comentam “ah, então você é Xacriabá, pesca, sabe nadar”. Mas em resposta ela tem de responder que não, hoje em dia sobretudo as mulheres e os jovens não têm a vivência do rio. “Eu falo que nós só não afogamos no rio porque a ausência daquilo que não pudemos viver no rio já nos afogou”, lamenta.

Esse povo indígena, assim como outras comunidades tradicionais do Cerrado, têm a história marcada por memórias de expulsão e desapropriação de seus territórios originais. As lembranças remetem às investidas do governo e de empresas agrícolas que, desde os anos 1970 com mais força, buscam transformar o Cerrado em lavoura e pasto. Segundo Mauro Pires, sociólogo e pesquisador, a ocupação do Cerrado como fronteira agrícola começou justamente em Minas Gerais. “O pacote tecnológico da revolução verde no Bioma Cerrado foi testado primeiro lá”, afirma. Com o desenvolvimento das tecnologias para correção do solo e plantação em larga escala – conjunto de técnicas responsáveis pela chamada revolução verde – as regiões do Cerrado mineiro foram logo tomadas pela “ocupação mais capitalista” do território, segundo o pesquisador.

O PASSADO FUTURO

Observar como as áreas do Cerrado mineiro foram convertidas em enormes pastagens e lavouras ajuda a entender a dinâmica de ocupação do agronegócio no Cerrado de maneira geral. Terras que antes não tinham valor aos olhos de produtores agrícolas passaram a ser consideradas valiosas depois da introdução das tecnologias de produção em larga escala e da construção de grandes obras de infraestrutura. Pires explica que o que aconteceu nas paisagens de Minas ainda no século 20 guarda semelhanças com o que acontece hoje, no século 21, com as porções de Cerrado mais ao norte, no encontro dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – o Matopiba.

Na medida em que o desmatamento avança e novas propriedades de produção agrícola aparecem, as pessoas que já viviam nessas áreas buscam alternativas para resistir. Aconteceu em Minas Gerais o que, no fundo, acontece no Cerrado como um todo. Quanto mais o agronegócio avança para os rincões, zonas longínquas dos principais centros, mais atinge as comunidades tradicionais. Ao longo da história de colonização e ocupação das terras brasileiras centenas de populações locais foram dizimadas ou forçadas se retirarem de suas terras originais.

“Quando conversamos com populações mais antigas, com os mais velhos, ouvimos as histórias de como os grupos se desfizeram. Como pessoas deixaram seu modo de vida e se incorporaram à área urbana”, conta Pires. O povo Xacriabá, por exemplo, foi dado como extinto por volta dos anos 1960. A historiografia oficial do período não percebia a existência dos parentes de Célia, considerava que todos haviam sido ‘assimilados’ Assimilação é o nome que se dá para o processo pelo qual grupos sociais adquirem características culturais de outros grupos, deixando para trás seus próprios costumes e valores. . Somente quando a população Xacriabá, ameaçada de perder suas terras, se organizou para reivindicar proteção foi que retornou à lista de povos indígenas do governo federal. Hoje, os Xacriabá são a etnia indígena mais populosa de Minas Gerais e no município onde fica o território de Célia são mais de 75% da população.

Os antepassados Xacriabá tiveram que lutar muito pela garantia das terras em que vivem atualmente. A partir de 1970 com a investida mais intensa de fazendeiros buscando áreas na região, caciques da comunidade foram inúmeras vezes até Brasília reivindicar a demarcação de seu território original. Nos anos 1980, a tensão pela disputa de terras na
região alcançou o noticiário internacional quando o cacique Rosalino Xacriabá foi assassinado por pistoleiros. Ele acabou virando uma espécie de mártir. Após o assassinato o movimento se fortaleceu. Finalmente, em 1987 a Terra Indígena Xacriabá foi demarcada. Porém, de acordo com as lideranças indígenas, só uma parte do território original foi assegurada oficialmente. Hoje buscam a ampliação da Terra Indígena para conseguirem acessar o Rio São Francisco.

“A luta pelo território continua sendo a luta prioritária porque sem território a gente não tem casa. E quem tem lugar para voltar tem colo, tem mãe e tem cura”

Célia Xacriabá

O território nas falas de Célia é algo bem mais amplo do que um pedaço de chão ou a delimitação de uma propriedade em um mapa. Para as comunidades do Cerrado, a terra tem o significado de ser a base mantenedora da vida. Os Xacriabá, como os geraizeiros, os quilombolas e outras comunidades tradicionais vivem integrados ao Cerrado: suas atividades cotidianas envolvem necessariamente elementos do Bioma. São pessoas que têm uma grande parte da vida baseada no manejo do que a natureza lhes oferece.

ESTRATÉGIAS DE LONGO PRAZO

E no Cerrado, a terra oferece muito. A enorme biodiversidade do Bioma contrasta com a imagem disseminada pelo senso comum de que o Cerrado seria um Bioma com solos pobres, marcado por grandes vazios: ressecado, com pouca gente, árvores e bichos.

A água, abundante no subsolo de onde o Cerrado permanece conservado, é fundamental para a existência das comunidades e suas lavouras. Os frutos das árvores nativas compõem a alimentação e as fontes de renda. As raízes, cascas e arbustos são os remédios naturais que cuidam da saúde de gerações e gerações.

O Cerrado mineiro é, desde muito tempo, o espaço onde dezenas de povos e comunidades tradicionais construíram suas vidas. O antropólogo Aderval Costa, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador de um programa de mapeamento das comunidades tradicionais no estado, explica: “estudos estimam que um terço do território de Minas seja de terras devolutas” – o que significa, na prática, que são áreas ocupadas por pessoas que nunca conseguiram ou puderam ir atrás da documentação de seus territórios. “São terras que estão na posse do Estado, mas não na propriedade”, afirma.

É difícil quantificar exatamente quantas comunidades e povos tradicionais habitam o estado mineiro. O que se sabe é que existe uma diversidade enorme de grupos que possuem
modos de vida bem específicos. Em 2014 foi sancionada uma lei estadual dedicada a esses grupos, com objetivo de promover o desenvolvimento com ênfase no reconhecimento e na garantia de seus direitos territoriais, sociais, ambientais, valorizando a identidade cultural e as formas de organização. Na opinião de Aderval, esse é um marco importante porque a legislação é um avanço na garantia de direitos, em comparação a lei nacional que reconhece os direitos das comunidades tradicionais.

Além de indígenas, quilombolas e geraizeiros, existem as comunidades vazanteiras, os povos de terreiro, os congadeiros, caatingueiros, veredeiros, faiscadores garimpeiros… Todos esses grupos, apesar de diferentes entre si, são considerados comunidades tradicionais porque vivem em simbiose e dependem dos recursos naturais do território onde vivem. Além de habitarem determinado local por várias gerações, esses grupos se auto identificam com uma cultura distinta. Outra característica das comunidades é dar importância aos rituais associados à pesca, colheita ou caça. E também possuir um conhecimento aprofundado sobre os ciclos e as estratégias de manejo da natureza local.

Em Minas, as comunidades tradicionais desenvolveram ao longo de séculos estratégias de sobrevivência e convivência com o bioma, numa relação de sintonia com os ecossistemas. Pescam, caçam, cultivam a terra e a tornam produtiva de diferentes formas, nas diversas paisagens do Cerrado mineiro: lavouras em encostas e fundos de vale, pastoreio e solta de gado nos campos e extrativismo de frutos e ervas nas chapadas.

Mônica Nogueira, antropóloga que estuda os povos tradicionais do Cerrado há mais de 20 anos, explica que as comunidades locais desenvolveram sistemas de conhecimento muito refinados sobre a fauna, flora e estrutura biológica do bioma. Por isso, considera que quando o desmatamento avança não é apenas a paisagem que sofre. Para ela, a degradação do Cerrado implica na perda de conhecimentos humanos.

A pesquisadora alerta que o sistema de conhecimentos desenvolvido pelas comunidades locais vive ameaçado, assim como as 952 espécies de plantas e animais do Cerrado que estão sob risco de extinção, segundo um levantamento da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Um exemplo visível em Minas Gerais é a modificação das paisagem das chapadas após a chegada das plantações de eucalipto. Várias espécies que eram importantes para as comunidades geraizeiras já não estão mais disponíveis. Segundo a pesquisadora, em poucas gerações os conhecimentos sobre essas espécies – como propriedades nutritivas e medicinais – podem ser esquecidos.

As sabedorias ancestrais também são um patrimônio essencial na visão de Célia. Para ela, que foi a primeira Xacriabá a fazer mestrado, a ciência faz parte de sua vida desde muito antes da universidade graças aos conhecimentos tradicionais de seu povo. Célia percebe que as pessoas mais velhas de sua aldeia são verdadeiras doutoras, que carregam em si enciclopédias de conhecimentos específicos e profundos.

“Então antes de existir pra mim os primeiros indígenas doutores de universidade, as primeiras doutoras pra mim sempre foram as parteiras Xacriabá. Porque elas certamente têm outro lugar na ciência. Têm um conhecimento que vem da ciência da terra, que vem da ciência do tempo, da ciência do invisível”.

“A monocultura não se sustenta. Tanto na terra quanto no pensamento. Ela cria uma sociedade enferma”

Célia Xacriabá

As sabedorias Xacriabá moldam o jeito de viver da comunidade e, de certa forma, garantem que esse povo que um dia já foi considerado extinto siga vivo. Para Célia, a chave para um futuro de saúde para a população, como um todo, reside na ideia de diversidade. Reflete: “Eu fico pensando em cabeças que somente plantam pensamento, como um território que planta somente uma cultura”. Ela acredita que uma sociedade sem a diversidade dos corpos, sem as diversas formas de vida das comunidades, é monocultural. E isso não se sustenta no longo prazo.