Mato Grosso

O Rolo Compressor

TSITSINA XAVANTE

 

Tsitsina Xavante vive perto dos rios e longe do mar. Ela tem como vizinhos dois córregos cristalinos e um afluente de corredeiras largas, com significado ancestral: o Owäwe, Rio das Almas. Sua casa, que é a aldeia Namunkurá, é cercada pelas árvores altas e escuras características da paisagem ciliar, que acompanha as margens dos rios, na formação original do cerrado.

A Terra Indígena São Marcos onde vive Tsitsina e uma parte do povo Xavante é um reduto de vegetação conservada no leste de Mato Grosso. A riqueza aquífera do território indígena se explica em parte pela formação do próprio estado. Trata-se literalmente de um berço de águas: nele estão as nascentes das bacias Amazônica e Tocantins-Araguaia, duas das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul.

A abundância de água fundamental para a vida de Tsitsina também favorece a diversidade biológica. A Terra Indígena de 188 mil hectares, um pouco maior que o município de São Paulo, guarda até hoje amostras de “vários tipos de paisagem” do Bioma mais antigo do Brasil.

O Povo Xavante A’uwe Uptabi que vive na região há mais de 200 anos identifica ao menos sete formações de paisagens do Cerrado diferentes em suas terras. Chamam cada variedade com um nome, reconhecem a fisionomia de cada tipo e têm seu estilo de vida estruturado em cima daquilo que podem colher em cada parte de Cerrado.

Para Tsitsina e para o povo Xavante autodenominado A’uwe Uptabi a vida não acontece no Cerrado mas a partir dele. São pessoas integradas à natureza do Bioma, que proporciona uma forma de ver, pensar e agir no Cerrado muito específica. A cultura dos Xavante se nutre e alimenta do Bioma, ao mesmo tempo, em um fluxo de eficiência e abundância documentado por vários pesquisadores ao longo dos últimos 60 anos.

Hoje, com mais de 22 mil pessoas, a etnia A’uwe Uptabi é a mais populosa de Mato Grosso. São nove territórios indígenas com mais de 300 aldeias espalhadas entre o leste e o nordeste do estado. As áreas demarcadas e garantidas aos indígenas por decretos são como oásis que guardam os remanescentes do Bioma. No estado, 40% de Cerrado foi devastado, segundo dados do levantamento oficial utilizado pelo Ministério do Meio Ambiente.

 

“Dá pra perceber as mudanças climáticas e o enfraquecimento da nossa biodiversidade. Cada vez menos chuva, menos frutos”

TSITSINA XAVANTE

A alteração da natureza original nos entornos das áreas indígenas não deixa de afetar o equilíbrio da vida nos territórios onde o Cerrado permanece em pé, aponta Tsitsina.

O ROLO COMPRESSOR

O Mato Grosso é uma liderança estabelecida no agronegócio brasileiro. É o estado que mais produz soja e que tem o maior rebanho de gado para corte do país. E também ostenta taxas de desmatamento entre as mais altas do Brasil.

Nas últimas duas décadas, Mato Grosso respondeu por 16% de todo o desmatamento verificado no Cerrado (o nível mais alto entre todos os estados) e 31% do desmatamento na Amazônia (o segundo mais alto). Em 2019, foi o segundo estado com maior área desmatada, ficando atrás somente do Pará.

Um estudo recente aponta a ligação entre a devastação das paisagens e o cultivo de soja. O levantamento revela que o problema do desmatamento é ainda mais grave no Cerrado do que na Amazônia. Com a Moratória da Soja Pacto ambiental firmado entre produtores de soja, ONGs ambientais e governo que prevê medidas contra o desmatamento da Amazônia. , a devastação diminuiu no Bioma amazônico. Mas o Bioma não conta com a mesma proteção. Entre 2012 e 2017, cerca de 880.000 hectares – uma área sete vezes maior que a extensão do município do Rio de Janeiro – foram desmatados no Cerrado mato-grossense. Quase todo esse desmatamento, precisamente 98,5%, foi ilegal.

“As comunidades tradicionais vivem hoje uma situação de cerco. Estão encurraladas pelo agronegócio”, aponta Wilson Rocha, procurador Ministério Público Federal. Wilson compõe o grupo de trabalho dentro do MPF que foi formado com o objetivo de aumentar o nível de proteção ao Cerrado.

Para ele, o bioma sofre com o projeto de expansão agrícola que não considera o aspecto socioambiental.

“O modelo do agronegócio avança como um rolo compressor que esmaga quem está no caminho”

WILSON ROCHA

As comunidades tradicionais são as mais atingidas pelo que o procurador avalia como “um desequilíbrio de força muito maior no Cerrado do que na Amazônia”. Wilson considera que as comunidades do Bioma têm um processo de organização e reivindicação de direitos mais recente, menos articulado do que as comunidades da região norte do país. “Se você olhar as comunidades indígenas do Mato Grosso por imagem de satélite vai ver que são pontos verdes cercados por um desmatamento gigantesco”.

A CONTAMINAÇÃO PELO AR

Em um outro território Xavante não muito distante da aldeia de Tsitsina, vive Hiparidi Toquira. A Terra Indígena Sangradouro vive uma realidade comum às outras 78 áreas indígenas do estado. As terras são demarcadas, mas isso não garante a qualidade de vida e o equilíbrio ambiental necessários para a vida Xavante.

Hiparidi explica que com as terras do entorno tomadas por soja ou gado, começaram a ter problemas com agrotóxicos que contaminam as águas e os animais que compõem a base da alimentação das aldeias. “Naturalmente os animais procuram refúgio dentro das nossas terras. Quando é época de plantação de milho eles saem, se alimentam, voltam e isso complica muito pra saúde das nossas crianças. Temos tido diarreia e outras doenças que não tinha antes”, diz.

Ao mesmo tempo em que Mato Grosso se destaca como um dos estados com maior produção agrícola, desponta também no ranking entre os que mais utilizam fertilizantes e herbicidas. Uma pesquisa feita pelo Ministério Público do Trabalho em 2015 revelou que a exposição aos agrotóxicos é sete vezes maior no Mato Grosso em comparação com o resto do país.

É comum no estado as grandes lavouras serem pulverizadas com agrotóxicos por aviões. E esse é outro problema que atinge as comunidades indígenas e populações rurais em geral. Em uma área mais ao nordeste do estado, por exemplo, 500 metros separam uma plantação de soja da Terra Indígena Urubu Branco que sente os efeitos da dispersão aérea de veneno. A região é uma floresta transitória entre o Cerrado e a mata amazônica, casa do povo Apyãwa, conhecido como Tapirapé.

Na mesma região há denúncias de comunidades rurais que foram expulsas com base na dispersão de veneno. O agrotóxico despejado na lavoura é carregado pelo vento, se espalha pelo ar e atinge as comunidades localizadas no entorno, causando doenças nas pessoas, roças e animais. Em uma reportagem em que a Agência Pública investigou casos em que comunidades locais sofreram com a pulverização, a engenheira agrônoma Polyana Rafaela Ramos, professora do Instituto Federal de Mato Grosso, afirmou que conhece muitos casos de assentamentos menores que têm terras boas para o agronegócio e sofrem ataques. “Eles ameaçam de forma velada ou diretamente com o veneno, vão comprando propriedades ao redor, e quem aguenta? Com gado morrendo, plantação morrendo, perdendo a saúde?”, afirmou à reportagem.

Apesar de relatos de camponeses e indígenas sobre doenças e consequências causadas pelo cerco das fazendas de soja, desfechos na Justiça são raros para situações como essa. Pesquisas para identificar a presença de agrotóxicos nos rios são caras e, por mais que os indígenas da terra Urubu Branco relatem o desenvolvimento de doenças, não foi feita uma investigação científica para verificar as concentrações de venenos nas águas ou peixes consumidos. O mesmo não ocorreu nas águas que chegam até as terras indígenas dos Xavante que também atravessam lavouras do agronegócio.

Como muitos dos efeitos dos agrotóxicos no corpo humano levam anos para serem percebidos as comunidades rurais expostas aos produtos esperam pelo desconhecido. Algumas pesquisas feitas no estado analisam a relação entre exposição de agrotóxicos e desenvolvimentos de doenças. Um estudo feito na Universidade Federal do Mato Grosso encontrou uma correlação significativa entre utilização de agrotóxicos e índices de agravos à saúde. Outra pesquisa desenvolvida na mesma universidade analisou casos de má formação congênita em bebês nos municípios mais expostos aos agrotóxicos do estado.

As comunidades rurais e tradicionais que ocupam o Cerrado mato-grossense há anos se sentem cada vez mais alarmadas com a velocidade do avanço do agronegócio. Para a Tsitsina essa realidade é um pesadelo do qual ela ela espera poder acordar. E explica: “um estudo recente diz que nosso Bioma pode acabar se continuar com o desmatamento e com empreendimentos afetando as águas como tem sido. Meu sonho é que na verdade que não aconteça o que esse estudo diz que pode acontecer”.