Bahia

A Grilagem e a Luta pelo Território

LUSINEIDE DOS SANTOS

 

Quando anoitece, Lusineide dos Santos acende as velas. No fundo do vale, encravada entre duas chapadas no oeste da Bahia, sua comunidade não receba linhas de energia elétrica. As famílias dependem de placas solares. Mas, como é comum o equipamento dar problema, vivem sem geladeira, internet e às vezes sem lâmpadas. Isolados, os moradores da comunidade Cacimbinha moram a 130km do núcleo urbano de Formosa do Rio Preto, município que está no ranking das maiores receitas agrícolas do país.

O caminho entre a comunidade de Lusineide e o centro da cidade é de chão de terra. Da estrada esburacada dá para avistar um pouco das enormes plantações de soja e, vez ou outra, se vê alguma máquina de colheita automatizada. Faz cerca de 40 anos que empresas produtoras de commodities chegaram na região e começaram a plantar grãos nas chapadas. Hoje, a área do município está forrada de lavouras quadriculadas onde o cultivo é feito com tecnologia avançada, no modelo padrão de produção mecanizada da monocultura brasileira.

Apesar da proximidade entre as lavouras e a Cacimbinha, a infraestrutura das fazendas não chega até as famílias que vivem no vale. Na verdade, a imagem paradoxal de uma comunidade sem energia ser vizinha de uma fazenda equipada com tecnologia de ponta é apenas um dos vários contrastes da região. Formosa do Rio Preto é um município onde circula muito dinheiro e muita pobreza. O PIB (Produto Interno Bruto) gira em torno de R$ 67 mil reais per capita, no entanto mais da metade da população (53,6%) vive com menos de meio salário mínimo por mês.

Os recordes de produtividade não encontram paralelo nos índices de desenvolvimento humano. Apesar de ter o PIB entre os 200 mais altos do país, Formosa também está entre as 2.000 cidades com maior índice de mortalidade infantil, segundo o IBGE. Em 2018, ano em que subiu para o quinto lugar do ranking dos municípios com melhores receitas agrícolas, quase um terço da população de Formosa estava vivendo em situação de pobreza extrema.

Mas na Bahia o cenário de desigualdade não é uma peculiaridade do município de Lusineidade, somente. Outras cidades do Cerrado baiano que têm a economia centrada na produção de commodities possuem índices parecidos. E o mesmo se verifica em municípios do Cerrado em outros estados onde o agronegócio tem investido nas últimas décadas.

Uma pesquisa elaborada pelo Greenpeace em 2018 analisou os indicadores econômicos e sociais do Matopiba. Os pesquisadores constataram que os municípios que têm alta produtividade agrícola e índices de bem-estar acima da média são uma minoria. O relatório constata que o senso comum de que os empreendimentos do agronegócio trazem desenvolvimento amplo para o Matopiba não tem lastro na realidade. Pelo contrário, a expansão da soja e da pecuária sobre áreas de Cerrado nativo gera enriquecimento para poucas empresas e proprietários, deixando um rastro de prejuízos ambientais e sociais para a população local.

O AVANÇO DAS LAVOURAS

Para a comunidade Cacimbinha, a chegada das fazendas de soja nas redondezas tem sido uma experiência traumática. Era final da década de 1970 quando os primeiros forasteiros compraram os primeiros títulos de propriedade das terras que cercam a comunidade. Com o tempo, o procedimento mostrou-se irregular: a partir de documentos forjados, as terras foram tomadas e viraram um dos casos de grilagem de maior extensão territorial do país, segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Nesse processo, a área enorme foi passando por vários donos, sendo fatiada e revendida. Aos poucos, as comunidades locais ficaram restritas ao vale. Hoje, as áreas de chapada que a população tradicional costumava usar para soltar gado e colher frutos estão completamente tomadas pela soja. Com o passar dos anos, em um processo muito semelhante com o que acontece em outras áreas do Cerrado, os moradores da Cacimbinha se viram encurralados por lavouras de monocultura de todos os lados.

“Mas o problema maior mesmo foi nesses últimos anos que tivemos que lutar contra invasões”, ressalta Lusineide. O conglomerado de fazendas vizinho de sua comunidade, chamado Condomínio Cachoeira do Estrondo, cercou o território da comunidade tradicional com o objetivo de expulsar os moradores e transformar a área em uma reserva legal.

Com a mudança do Código Florestal, em 2012, as fazendas da Estrondo não tinham a quantidade de área conservada exigida pela lei e resolveram tentar anexar o território das comunidades. Além de cercas, instalaram guaritas e portões para impedir o acesso e intimidar os moradores. Toda vez que alguém precisava sair de alguma das comunidades do vale era obrigado a se apresentar e mostrar o documento para seguranças fortemente armados Lusineide conta que na medida em que as comunidades resistiam, as intimidações aumentavam. Quando as comunidades se organizaram e entraram com uma ação de manutenção de posse de seus territórios, os ataques se agravaram. Seguranças particulares da fazenda acompanhados pela Polícia Militar retiraram a antena de comunicação de celular das comunidades, camponeses foram levados presos e impedidos de circular com o gado nas áreas que haviam sido cercadas ilegalmente.

“Quando o conflito estava bem arrochado eles barravam as pessoas, queimaram carros, mataram gado e, inclusive, uma pessoa foi baleada.”

LUSINEIDE DOS SANTOS

A disputa se arrastou por anos. As ameaças e violações de direitos humanos praticadas contra as comunidades tradicionais somente cederam quando a Justiça concedeu uma liminar certificando a posse das terras do vale para as comunidades tradicionais. “A gente lutou, lutou até o fim. Mesmo com uma pessoa baleada nós não desistimos porque se a gente perdesse lugar pra onde a gente iria?”, relembra a moradora da Cacimbinha. O conglomerado de fazendas recorreu a decisão judicial mas até agora, em todas as instâncias, a posse foi mantida para as comunidades.

O condomínio foi forçado a retirar as guaritas e cercas. Hoje, as comunidades buscam na Justiça indenização pelos danos causados. E o caso chama atenção. Na análise de Liliane Campos, advogada que trabalha diretamente com conflitos fundiários no Cerrado baiano, o desfecho judicial favorável às comunidades tradicionais é uma exceção.

UMA DISPUTA CONSTANTE

As comunidades tradicionais baianas – camponesas de fundo de pasto, ribeirinhas, geraizeiras, quilombolas e outras – vivem uma realidade de tensão contínua. Em muitos locais, os conflitos por terra que já assustaram no passado voltam a ocorrer. Em outras regiões, as disputas e ameaças têm se acirrado de forma mais intensa nos últimos anos como consequência do avanço das fronteiras agrícolas.

Um relatório elaborado pela Comissão Pastoral da Terra em 2019 registra conflitos fundiários envolvendo 130 comunidades na Bahia. O levantamento considera conflitos como o da comunidade Cacimbinha mas também enumera disputas envolvendo pequenos produtores, quilombolas, indígenas, sem terra, dentre outros. Segundo o relatório, considerado uma referência no assunto, a Bahia foi o terceiro estado com maior número de conflitos, perdendo somente para o Maranhão e o Pará.

 

“A grilagem é um problema que afeta comunidades tradicionais de todo o estado. Nós que acompanhamos a realidade baiana percebemos: o processo é generalizado”

LILIANE CAMPOS

A advogada analisa que a legislação muitas vezes opera de forma falha, favorecendo quem tem acesso a mais instrumentos jurídicos e não exatamente quem faz o uso social da terra como menciona a Constituição Federal. “O entendimento é de que dono é aquele que tem o documento mas no Brasil isso é uma falácia”, afirma.

Liliane contou que ao longo dos anos acompanhando conflitos fundiários percebe que, no geral, os juízes de primeira instância dão decisões favoráveis às fazendas ou empresas que apresentam documentos sem observar de fato se há a comprovação da posse. Segundo ela, muitas vezes o magistrado sequer argumenta algo na sentença, só embasa a decisão em “documentos anexos”. O problema é que várias vezes os documentos anexos não são oficiais. “Cansei de ver sentença embasada em um declaração online que se emite pelo site do Incra. Documento esse que inclusive contém um asterisco informando que não serve para fins comprobatórios de posse”, diz ela.

A advogada considera que a decisão da Justiça favorável à comunidade da Cacimbinha e outras afetadas pelo Condomínio Estrondo é “absolutamente fora da curva”. Ela já trabalhou em outras ações em que mesmo havendo comprovação de que as famílias residiam nos territórios há mais de 100 anos, os supostos “novos proprietários” acabaram beneficiados. “É um problema institucional, muitas vezes as decisões liminares consideram títulos de compra e venda de terras e isso não é suficiente para comprovar a posse”.

De acordo com informações da Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia, é comum grileiros comprarem pequenas posses de moradores locais e depois juntarem várias posses para solicitar o registro da propriedade em cartório com seu nome. Em outros casos, documentos são forjados atestando a propriedade de terras. Segundo o relatório sobre Matopiba elaborado pelo Greenpeace, “muitas vezes a prática conta com a cumplicidade de donos de cartório de pequenas cidades, os quais mesmo sabendo da fragilidade da documentação aceitam emitir registros posteriormente utilizados em ações judiciais para ratificar a validade da propriedade”.

No estado da Bahia, as terras altas e planas, apropriadas para a lavoura mecanizada, foram assim ocupadas. Essas áreas, geralmente utilizadas por populações locais para colher frutos e soltar o gado eram essenciais para o modo de vida e alimentação tradicional. Aos poucos, com a substituição das matas de chapada por lavouras, as comunidades ficaram restritas aos vales ou migraram para centros urbanos.

Como Lusineide conta, a vida nos vales se transformou. Comunidades acostumadas a viver colhendo frutos e cultivando roças, em integração total com o Bioma, se preocupam com a sobrevivência. A água está mais escassa, as erosões das chapadas aumentaram e a comunidade Cacimbinha teme desenvolver doenças causadas pelos agrotóxicos das lavouras. “A gente fica embaixo e eles ficam em cima aí jogando todo esse veneno nas nossas nascentes”, lamenta.

“Se a gente vive do que a natureza dá como vamos continuar desse jeito? Como é que a gente viverá daqui uns anos?”

LUSINEIDE DOS SANTOS