Goiás

A Medicina das plantas

LUCELY PIO

 

Entre a casca e o tronco aparece um remédio. Lucely Pio conhece as folhas, as raízes e até as entrecascas das espécies nativas do Cerrado. Seu ofício é curar dores e doenças com os ingredientes da farmácia viva que cerca sua comunidade. Ela vive em Goiás e seu quintal é a savana mais biodiversa do mundo.

Era perto do ano de 1880 quando seu tataravô, o ex-escravizado Chico Moleque, instalou-se nas margens do Rio Verde, uma área hoje localizada a 420 km da capital Goiânia, no sudoeste do estado. Depois de conseguir comprar a alforria, Chico Moleque criou lá os dez filhos e formou um quilombo. Lucely é da quinta geração de descendentes que resistem e mantêm vivas as tradições da Comunidade do Cedro. “A gente conseguiu segurar até nos dias de hoje a atividade que é: cuidar das pessoas com as plantas medicinais”, conta.

Mais de um século depois, os quilombolas trabalham com algumas das mesmas espécies que o tataravô utilizava. O conhecimento passado de geração em geração garantiu à comunidade e à Lucely o reconhecimento como referência nacional na utilização de plantas medicinais. Hoje, o laboratório caseiro da Comunidade do Cedro produz remédios a partir de 450 espécies nativas diferentes, catalogadas e com seus usos descritos.

As curandeiras da comunidade criaram o laboratório em 1997. De lá para cá, formularam cerca de 90 medicamentos. São chás, pomadas, tinturas, garrafadas e xaropes que chegam à população que vive nas cidades vizinhas. Todos os remédios são naturais, preparados a partir da coleta de ingredientes encontrados nas áreas onde o Cerrado segue conservado. E são também medicamentos reconhecidos: desde 2006, o governo federal validou oficialmente a utilização das plantas medicinais como uma estratégia para melhorar a atenção à saúde da população, fortalecer a agricultura familiar, gerar emprego e renda de forma sustentável.

As sabedorias ancestrais das quilombolas do Cedro se juntaram com os conhecimentos de outras raizeiras em uma publicação de mais de 400 páginas que descreve as espécies medicinais do Cerrado. A Farmacopeia Popular é um marco importante na organização dos conhecimentos sobre plantas medicinais, porque no Brasil temos poucos registros escritos dos conhecimentos populares. O livro é como uma enciclopédia, descreve as plantas, suas formas de uso e suas interrelações com a cultura e o contexto social do Cerrado. Escrita por mais de 260 autores, a partir de pesquisas realizadas em quatro estados, dá uma dimensão do tamanho do conhecimento que as populações tradicionais detêm da biodiversidade brasileira.

“Sem o Cerrado eu acho que eu não dava conta de sobreviver. Porque o Cerrado pra mim é vida, é minha força, é minha luz, é energia”

Lucely Moraes Pio

Segundo Lourdes Laureano, uma das coordenadoras da Farmacopeia, os frutos e remédios do Cerrado estão presentes no dia a dia da maioria da população. Do arroz de pequi, talvez o prato mais tradicional de Goiás, ao uso da casca de jatobá, milhões de pessoas usam cotidianamente plantas nativas do Bioma.

 

Não existe um levantamento que quantifique exatamente quantas comunidades fabricam seus próprios remédios caseiros no Goiás, mas somente para a elaboração da Farmacopeia Popular no estado, raizeiros de ao menos 11 municípios diferentes foram consultados.

No estado, são comuns as “farmacinhas comunitárias ou caseiras”, que funcionam geralmente nas cozinhas de pessoas, tanto em comunidades rurais como urbanas. O trabalho dos grupos comunitários é conhecido pela eficácia de seus tratamentos e exercício de uma prática de saúde confiável e solidária. Uma das principais características das farmacinhas é proporcionar o acesso das pessoas aos remédios caseiros, que são vendidos a baixo custo ou doados a quem não pode pagar. Para Lourdes, a cultura de cuidado que provém das plantas medicinais proporciona saúde para as pessoas e também para o meio ambiente. Ela diz que saber utilizar as as espécies do Cerrado ajuda a mantê-lo de pé.

DEVASTAÇÃO ANTIGA

A preocupação em conservar o Cerrado faz parte do dia a dia das raizeiras porque há décadas elas veem as paisagens sendo transformadas em pastos ou lavouras. E percebem o sumiço de espécies nativas que antigamente eram abundantes.

A destruição das paisagens originais de Cerrado foi intensa no século 20, principalmente a partir da década de 1970. Nesse período, a ditadura militar (1964-1985) incentivou com políticas públicas o avanço da produção agrícola na região seguindo o pacote tecnológico da chamada revolução verde Revolução Verde é o nome dado ao conjunto de iniciativas tecnológicas que transformou práticas agrícolas e aumentou a produtividade de lavouras a partir do uso do uso de fertilizantes, agrotóxicos, maquinários e desenvolvimento de sementes em laboratório. . As terras planas do estado eram propícias para a implantação da agricultura mecanizada e, por não ser tão distante do eixo Sudeste, Goiás despontou como uma fronteira agrícola atrativa.

Hoje, em Goiás, há uma porcentagem maior de Cerrado desmatado do que conservado. Segundo o mais recente mapeamento oficial do Bioma, do Ministério do Meio Ambiente, 42% do Cerrado já virou pasto. Resta 41% de vegetação natural, porém essas áreas remanescentes estão altamente fragmentadas. Os dados, publicados em 2015, se referem ao ano de 2013.

Para a geógrafa Elaine Silva, do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento, que coordena mapeamentos sobre a devastação do Bioma, “só sobram manchinhas verdes de áreas conservadas, o que reduz as possibilidades de continuidade da biodiversidade”. Um relatório extenso, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente ainda em 2007, já revelava dados inquietantes sobre a situação da fauna e flora dos biomas Cerrado e Pantanal.

Há 13 anos, a pesquisa apontava que as principais regiões de grande impacto da atividade humana sobre a paisagem estão nos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná. As conclusões do estudo indicavam que as pressões antrópicas mais intensas encontram-se principalmente nas áreas de ocupação mais antiga nesses estados. E várias dessas áreas correspondem justamente às regiões que possuem maior importância biológica. O relatório descreve que ao longo do eixo central de distribuição do Cerrado concentram-se as áreas de maior biodiversidade endêmica – ou seja, locais onde vivem espécies únicas.

Com o passar dos anos, a devastação no Cerrado goiano se agravou. Segundo a geógrafa Elaine Silva, “hoje em dia as partes do Cerrado em Goiás estão entre as áreas mais desmatadas precisamente porque não há mais o que ser desmatado”. As consequências do processo de destruição antigo hoje são sentidas principalmente na quantidade de água: “cada vez mais a população sofre com o desabastecimento, inclusive nas cidades”.

Com o desmatamento causado pelo avanço do agronegócio, árvores típicas do Cerrado goiano estão desaparecendo. E faz tempo. Regiões do estado foram listadas como prioritárias para reflorestamento de árvores nativas do tipo lenhosas – que têm caules grossos – em uma pesquisa oficial há mais de 10 anos.

Dentre as grandes áreas de Cerrado que não possuem inventários ou Unidades de Conservação está o noroeste de Goiás. Essa região, riquíssima em biodiversidade, não tem áreas protegidas que deem conta de conservar a riqueza natural local. Em todo o estado, os parques de preservação representam apenas 1% do Cerrado goiano, enquanto em outros estados a média é de 2,5%. Ainda assim, esses números estão muito abaixo das metas internacionais que são de cerca de 10%. Considerando o Cerrado inteiro, menos de 3% da área do Bioma é efetivamente protegida.

PROTEÇÃO NA PRÁTICA

Para Lucely, a conservação do Cerrado é muitas vezes um trabalho de formiguinha que começa no entorno da própria comunidade. “O nosso desafio é que a gente convença as pessoas que moram perto da gente pra não usarem veneno nas roças, pra não desmatarem. Vamos tentando explicar a importância de manter o Cerrado em pé”. Para ela, a continuação do modo de vida da sua comunidade depende da conservação da natureza.
O mesmo vale para Lourdes, farmacêutica que trabalha há mais de 50 anos com as plantas do Cerrado.

Juntas, Lucely e Lourdes integram a Articulação Pacari, uma rede socioambiental formada por organizações comunitárias que praticam medicina tradicional a partir do uso sustentável da biodiversidade do Cerrado. Desde 1999, fazem pesquisas populares, capacitações e articulações políticas em defesa dos conhecimentos medicinal popular. A Pacari, por exemplo, ajudou nas discussões da lei sobre o acesso e proteção aos conhecimentos da biodiversidade brasileira. O marco legal regula o acesso ao patrimônio genético e às informações sobre as plantas utilizadas pelas comunidades tradicionais. Como Lourdes aponta, “todos esses conhecimentos são muito disputados, principalmente por indústrias farmacêuticas e de cosméticos que buscam se aproveitar das espécies e tradições brasileiras para vender produtos”.

O objetivo dessas guardiãs do Cerrado é proteger o patrimônio científico popular e expandir o seu uso prático. Como diz Lucely, “a gente vê que a saúde da comunidade melhora quando conhece mais os alimentos da região, sabe usar as ervas.” Pelos interiores de Goiás, Maranhão, Tocantins e Minas Gerais a articulação Pacari conta com mais de 600 grupos de pessoas que utilizam e disseminam os benefícios dos remédios da terra. “Espalhamos essa ferramenta pra que possamos cuidar melhor da nossa saúde junto do Cerrado. É isso”, resume Lucely.