Distrito Federal

Um Polo de Articulação

Mais de sete mil pessoas se encontraram em um evento de quatro dias para celebrar a vida no Cerrado. O ano era 2019 e a celebração tinha tradição: desde 2001, o Encontro e Feira dos Povos do Cerrado aglomera ideias e pessoas em defesa da conservação do Bioma. O encontro une venda de produtos de comunidades com reflexões sobre políticas públicas e geralmente acontece na capital do Distrito Federal.

Bem no centro do Brasil, raizeiras, indígenas, pesquisadores, quilombolas, agricultoras e representantes de outras várias comunidades tradicionais se reuniram em torno do mote Cerrado Vivo: Território, Diversidades e Democracia. “Esse encontro foi incrível por unir vários povos, muitas comunidades em Brasília discutindo o Cerrado num cenário desolador, em um momento em que as políticas públicas que foram construídas com tanta luta estavam sendo desmontadas”, comenta Kátia Favilla, antropóloga que há mais de 12 anos trabalha com povos e comunidades tradicionais do Bioma. Ela integra a Rede Cerrado, entidade que articula comunidades tradicionais, líderes comunitários e ONGs na missão de proteger o cerrado.

É a Rede Cerrado que promove em setembro o Encontro dos Povos e que, no resto do ano, organiza a resistência no Bioma. A entidade nasceu durante a Eco 92 Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, em 1992. e hoje conta com 55 organizações afiliadas, cobrindo quase todos os estados brasileiros onde há Cerrado. Hiparidi Xavante, líder indígena de aldeias do Mato Grosso e um dos coordenadores da Rede, resume: “é uma entidade importante porque agrupa várias organizações e faz a gente sentir que não está sozinho, que não somos o único movimento ou a única comunidade ameaçada.”

Ao longo dos 28 anos de atuação, a Rede ajudou na construção de vários Conselhos e Comitês Nacionais de discussão ambiental e cultural. Participou da elaboração de marcos legislativos fundamentais para a proteção do Bioma, como a lei que regula o acesso ao patrimônio genético e às informações sobre as plantas utilizadas pelas comunidades tradicionais. A Rede também compõe o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, que é um caminho institucional para a entrada das reivindicações das comunidades na agenda pública.

“Nesse sentido é fundamental o papel da Rede Cerrado porque dá visibilidade, chama atenção para o que nós estamos sofrendo nas nossas terras pelo interior do Brasil”, aponta Dona Socorro, das quebradeiras de coco babaçu e coordenadora geral da Rede. A ponte entre a realidade dos rincões do Cerrado e os espaços de decisão governamental, como Brasília, é o trunfo para a conservação do Bioma. A antropóloga Kátia Favilla aponta que a proteção da sociobiodiversidade do Cerrado é um aspecto inerente à vida das comunidades tradicionais e povos originários.

“Quando a gente fala de Cerrado não tem como pensar em ‘povos que estão dentro do Cerrado’. Os povos e o Bioma são como uma coisa só. O Cerrado existe por conta desses povos e esses povos existem por conta do Cerrado”

Katia Favilla

Por isso, a conservação da biodiversidade do Bioma passa, necessariamente, pela presença das comunidades tradicionais, analisa a antropóloga.

“Mas além de articular as próprias comunidades para a proteção do Cerrado, a Rede tem uma outra linha de atuação: promover a cooperação internacional para conservação do Bioma”, explica Katia. O Cerrado é a savana mais rica do mundo e detém 30% da biodiversidade do Brasil. Já perdeu mais da metade da vegetação original, permanece sofrendo com o desmatamento ilegal, mas não é tão valorizado como a Amazônia, por exemplo.

Como acontece com a floresta tropical, o equilíbrio ecológico do Cerrado também é fundamental para a vida do planeta, ainda que o Bioma seja menos conhecido. É o ‘berço das águas’ que garante abastecimento para o país e condições sazonais para a safras de produção de alimentos que chegam ao mundo todo. “A devastação do Cerrado traz um impacto climático profundo na escala regional, afetando os calendários agrícolas e a produtividade do setor agroexportador”, aponta Edegar Rosa, diretor de restauração do WWF.

No Cerrado estão 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras que abastecem 6 das 8 grandes bacias hidrográficas do país. O Bioma guarda 40% de toda água doce do Brasil e abriga três dos principais aquíferos do país: Bambuí, Urucuia e Guarani.

E o horizonte de devastação que aflige as comunidades do Cerrado é preocupante também para quem vive nas áreas urbanas. Para o pesquisador Altair Barbosa, a devastação do Bioma afeta o abastecimento de água em várias regiões do Brasil. Em entrevista à BBC, ele explica que a gigantesca rede de raízes do Cerrado atua como uma esponja, ajudando a recarregar os aquíferos que levam água a torneiras de dezenas de cidades do país.

O avanço da monocultura tem afetado a abundância hídrica em várias regiões do Cerrado. Há dezenas de comunidades que viram nascentes de água secar depois da chegada de plantações de eucalipto, por exemplo. Outros casos aparecem no oeste da Bahia, onde conflitos por acesso a água explodiram nos últimos três anos. Na porção baiana do Bioma, comunidades denunciam a diminuição do lençol freático e dos rios como resultado do uso de mecanismos de irrigação nas lavouras de soja.

A importância e o perigo que paira sobre as águas do Cerrado levou as comunidades tradicionais até a Câmara dos Deputados, em 2019, para entregar uma petição com mais mais de meio milhão de assinaturas pedindo a aprovação da PEC 504/2010, que transforma o Cerrado e a Caatinga em Patrimônio Nacional. Na ocasião, foi organizada uma manifestação inusitada: um garçom serviu copos de água vazios aos parlamentares. No fundo dos copos seco estava escrita a mensagem “Não espere a água acabar para fazer alguma coisa”.

A entrega da petição foi um marco na trajetória da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, que atua desde 2015 para alertar a sociedade sobre os impactos da destruição do Bioma, e um exemplo do tipo de atuação que os movimentos comunitários do Cerrado costumam fazer na capital do Brasil.

CERRADO NO CENTRO DO BRASIL

O Distrito Federal está completamente dentro do Cerrado. Em Brasília, ipês e outras árvores nativas resistem florindo, lembrando o bioma que envolve a capital. Atualmente, a maioria da população do DF habita áreas urbanas e as paisagens originais de Cerrado ficaram praticamente restritas às áreas de preservação.

Com a instalação da capital federal em 1960, cerca de 70% da vegetação natural desapareceu. O que sobrou de Cerrado está nas Unidades de Conservação: o Parque Nacional de Brasília, a estação ecológica de Águas Emendadas, o Jardim Botânico de Brasília, a Fazenda Experimental da UnB (Água Limpa), a reserva ecológica do IBGE. São ilhas dentro de uma matriz urbana, dificultando o movimento das espécies e a manutenção de importantes processos ecológicos.

Essa fragmentação atualmente sofre ainda mais pressão, com os corredores verdes sendo alvo de especulação imobiliária intensa. Em Águas Claras, uma das regiões administrativas do DF, várias nascentes foram aterradas para a construção do bairro novo, de prédios e shoppings. O Setor Noroeste era uma área de mais de 300 hectares de Cerrado nativo, ao lado do Parque Nacional. Somente Águas Claras consumiu mais de 400 hectares de vegetação para suprir o mercado imobiliário do Plano Piloto e quase um quarto da população de Brasília mora em mais de 500 condomínios que nas últimas três décadas tomaram o lugar de áreas verdes do DF, aponta uma pesquisa realizada na Universidade de Brasília.

A ocupação de áreas remanescentes de Cerrado no entorno da capital também causou conflitos fundiários recentes. Na Asa Norte de Brasília, a comunidade indígena Bananal, também conhecida como Santuário dos Pajés, foi palco de uma disputa acirrada. De um lado indígenas de diferentes etnias, dentre elas os Fulni-Ô Tapuya, Tuxá, Kariri-Xocó e Guajajara que ao longo dos anos se fixaram no local. Do outro, o governo do DF e empreiteiras engajadas na expansão imobiliária do setor.

Os indígenas que consideram a área um trecho sagrado de Cerrado solicitaram à Funai a proteção e demarcação do território, enfrentando as movimentações das empreiteiras que começavam os estudos para a urbanização da área. Em 2009, o Plano Diretor de Brasília foi alterado e a área ocupada pelos indígenas foi inserida dentro do mercado para ser vendida por meio de leilões públicos que bateram recordes. Dois anos depois, o laudo antropológico oficial constatou presença indígena ancestral na área, mas foi questionado pela Funai. O desfecho só ocorreu em 2013: após muita disputa, com três casas indígenas incendiadas e protestos realizado, a Justiça Federal decidiu a favor dos indígenas e reconheceu a área Santuário dos Pajés como terra indígena. No entanto, o território segue sofrendo pressões imobiliárias até hoje. A área remanescente ocupada por indígenas, bem no coração do Cerrado, abriga mais de 3.000 espécies catalogadas mas permanece sob ameaça de condomínios de alto padrão da capital.