São Paulo

A menor porção que há

No meio da maior metrópole da América Latina árvores antigas resistem. Pés de ipê, murici ou araçá do campo lembram que São Paulo um dia já foi Cerrado. Na época em que as várzeas dos rios Tietê e Tamanduateí ainda eram terras Tupiniquim, a região onde hoje fica a capital paulista era um ponto de encontro de matas e campos.

Nos registros antigos do início da colonização é frequente a menção à região de São Paulo como “lugar de campos”. Em 1585, Fernão Cardim, um padre jesuíta, escreveu que “Piratininga… é terra de grandes campos… e campinas… que é formosura de ver”. Os antigos campos da São Paulo eram cobertos de vegetação típica arbustiva, com galhos retorcidos, do Cerrado.

Passados quase 500 anos, o que resta de Cerrado na capital serve como uma memória do caminho natural e abrangência de uma paisagem que se interconecta com quase todos os outros Biomas brasileiros. Existem dois redutos de lembrança que ficam na zona oeste do município. Um fica na cidade universitária da Universidade de São Paulo (USP), nos entornos de uma caixa d’água, na parte alta do terreno, onde algumas espécies raras do Cerrado seguem vigorosas. É o caso de um arbusto espinhoso chamado língua-de-tucano, que era abundante na vegetação original e muito utilizado pelos primeiros colonizadores para fabricar alpargatas. O outro remanescente do Bioma fica no bairro do Jaguaré, em parque fechado ao público, em uma área de reserva.

 

 

 

 

A resistência de algumas poucas árvores do Cerrado no polo de maior urbanização do país ajuda a entender a situação do Bioma em todo o estado. No estado de São Paulo, a destruição do Cerrado tem contornos dramáticos: no início do século 20, 18,2% do território era coberto pelo Bioma. Cem anos depois resta menos de 1%. Da pequena porção remanescente, menos de 20% está protegida em unidades de conservação ou reservas legais.

Muitas vezes considerado um ‘mato qualquer,’ em contraposição à exuberante Mata Atlântica, o Cerrado demorou para entrar na agenda de conservação ambiental paulista. Rapidamente desmatado, foi sumindo e, no senso comum, acabou sendo associado como um Bioma presente no centro-oeste brasileiro. Mas o Cerrado costumava atravessar o território paulista até alcançar o norte do Paraná.

Atualmente, restaram mini-áreas fragmentadas, ilhas de vegetação que são frágeis e não conseguem garantir a perpetuação das espécies endêmicas. E, sozinhas, não permitem a continuação do ciclo de abastecimento de água.

“Diferentemente da Amazônia, onde há um todo com buracos, o Cerrado está muito debilitado. É um nada com alguns pontos, algumas manchas de vegetação e com intenso uso e ocupação ao redor”

Marisa Bittencourt, pesquisadora do Instituto de Biociências da UPS, em entrevista à Fapesp.

A expansão urbana e agrícola sobre o Cerrado paulista, apesar de antiga, gera preocupações cada vez mais atuais. Para pesquisadores, a importância de conservar o Cerrado em São Paulo é de ordem muito prática: proteger o Aquífero Guarani. Uma das maiores reservas subterrâneas de água do mundo, a caixa d’água natural sofre com a substituição da vegetação nativa.

DEBAIXO DOS ARBUSTOS, UM MANANCIAL

O berço das águas brasileiras se localiza precisamente no meio do Cerrado. É no planalto central que estão as nascentes de 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras. Mas as áreas mais ao sudeste, apesar de não estarem dentro do chamado “arco das nascentes”, também são importantes para a manutenção da abundância de águas do Bioma.

Em toda a sua extensão, a vegetação savânica e campestre funciona como uma esponja, absorvendo a água abundante das chuvas de verão e liberando-a lentamente ao longo de todo o ano, garantindo rios perenes. A vegetação típica de áreas úmidas, especialmente, com solos orgânicos profundos protegidos por arbustos, armazena água e abastece nascentes durante a estiagem.

Nos interiores de São Paulo, algumas regiões ricas em nascentes de água coincidem com porções conservadas de Cerrado. Nas bordas do município de Botucatu, por exemplo, a vegetação arbustiva do Cerrado garante recarga de água suficiente para abastecer cidades da região centro-sul do estado.

Trechos campestres remanescentes do Cerrado paulista podem ser analisados como um exemplo prático da estrutura da vegetação influenciando direta e indiretamente o armazenamento da água da chuva. Em florestas, quanto maior a densidade de árvores, maior será a retenção da água da chuva pelas copas, de modo que o volume de chuva que chega ao solo é ‘subtraído’.

Já nos campos do Cerrado acontece o inverso:  a paisagem dominada por arbustos e pequenas árvores conduz mais água da chuva para o solo. A vegetação é de pequeno porte na superfície mas no subsolo guarda raízes longas, profundas. O Cerrado é como se fosse uma floresta invertida, explicam populações locais. As ramos enxutos ajudam a conduzir água para raízes e, consequentemente, para o solo. Uma vez na terra, a água alimenta as nascentes, riachos e reservas de água subterrânea, como o Aquífero Guarani.

Essa capacidade de gerar água já foi considerada, inclusive, como uma alternativa para expandir as reservas de água do Aquífero. No segundo congresso de pesquisadores dedicados ao estudo do imenso reservatório, foi elaborada a ideia de implantar “fazendas de água” – áreas que ‘fabricassem’ mais água para recarregar o aquífero. Essas fazendas consisitiriam em áreas de vegetação rasteira original do cerrado conservada ou restaurada.

O potencial natural que o Cerrado tem de absorver e guardar água aparece em outros dois aquíferos, além do Guarani. Urucuia e Bambuí são reservatórios também grandes, responsáveis pela formação e abastecimento das regiões do rio São Francisco, Tocantins e Araguaia. “Além dessas imponentes bacias hidrográficas de dimensões continentais, no Bioma ainda nascem águas que dão origem a bacias hidrográficas independentes de grande importância regional”, explicou Altair Barbosa, antropólogo e arqueólogo reconhecido como um dos principais especialistas em Cerrado, em entrevista ao portal Sou Ecólogo.

“Representada por uma complexa teia, as águas que brotam do Cerrado são as responsáveis pela alimentação e configuração das grandes bacias hidrográficas da América do Sul”

Altair Barbosa

RESTAURAÇÃO A PASSOS LENTOS

Desde a década de 1990 no estado de São Paulo existem esforços de conservação e regeneração do Cerrado. No início dos anos 2000, um projeto de pesquisa da USP mapeou os remanescentes do Bioma no estado fazendo um esforço de mensuração das perdas e perspectivas de conservação. Na época, os pesquisadores identificaram a importância de engajar as pessoas que possuem terras ou vivem nas áreas rurais no esforço de conservação, visto que a maioria das áreas se encontra dentro de propriedades privadas.

Em 2009, a Assembleia Legislativa do estado aprovou uma lei que protege o Cerrado paulista, proibindo a supressão de vegetação se a área abrigar espécies em extinção ou for importante para a recarga de aquíferos. Ao longo dos anos, a lei sofreu algumas revisões, mas guarda a caraterística original de proteção à vegetação nativa. No entanto, na prática, a conservação do Cerrado paulista não é um assunto pacificado.

Após a aprovação do Código Florestal em 2012 surgiu um imbróglio no estado envolvendo diretamente o Cerrado. Com a nova legislação ficou estabelecida a obrigatoriedade de compensar o desmatamento da vegetação com a restauração de áreas no mesmo Bioma. Na época, surgiu um atrito entre ruralistas e ambientalistas que discordavam sobre a importância de restaurar áreas do Cerrado dentro de São Paulo.

De um lado, fazendeiros, principalmente do setor da cana de açúcar, argumentavam que fariam a compensação pelo desmatamento do Cerrado em outro estado, mas dentro do mesmo Bioma. Do outro lado, ambientalistas ressaltavam a importância de restaurar terras paulistas. No fim, foi retirado do texto da regulamentação o trecho que obrigava a compensação dentro de São Paulo.

Em paralelo, entidades de pesquisa e o governo do estado desenvolveram orientações para a restauração do Bioma na região. Um manual do governo,  editado em 2011, estabelece os parâmetros e indicações para recuperar áreas degradadas. Em alguns casos, a administração pública estadual negocia a substituição de multas em dinheiro por compromissos de restauração de áreas destruídas.

Em tese, a necessidade de recuperação do Cerrado perdido é uma ideia estabelecida no estado. No entanto, São Paulo segue às cegas em relação à quantidade de áreas efetivamente restauradas.