Os povos e comunidades tradicionais do Cerrado encerraram neste domingo em Brasília um encontro que desde o dia 5 de junho reuniu cerca de 700 líderes representantes dessas populações. Ao final do evento, eles aprovaram uma pauta curta e incisiva com três pontos básicos: acesso à terra e aos territórios, reconhecimento e valorização dos seus modos de vida, usos e costumes e a opção pela produção agroecológica em suas áreas. A lista é o resultado de intensas discussões e manifestações ocorridas durante o encontro. Especialistas, representantes do governo e do Ministério Público também participaram dos debates.
Ao clamar pelo direito à terra e ao território, os povos do Cerrado querem na prática que o governo garanta legalmente a eles o direito de usar os recursos naturais do bioma. Indígenas e quilombolas já gozam desse reconhecimento e têm parte de seus territórios demarcados. A situação não é a mesma para quebradeiras de coco, geraizeiros, raizeiros, vazanteiros, extrativistas, pescadores artesanais, apanhadoras de flores e agricultores familiares.
Eles sequer estão mapeados pelo governo e essa invisibilidade no radar social fez que o Estado abrisse espaço para o agronegócio, a mineração e a grilagem de terras públicas – historicamente ocupadas pelos tradicionais. Além de entrar para o mapa, esses povos querem a autonomia para definir sua própria cartografia, sendo parte da formulação do mapeamento.
Os povos do Cerrado também decidiram se unir contra as emendas constitucionais, portarias e regulamentações que ameaçam o direito aos territórios (PEC 215; ADIN 3.239-9). São estratégias que vêm de setores produtivos que, encampados pelo Estado, investem contra formas já estabelecidas de reconhecimento oficial de suas terras.
“Ao mesmo tempo, queremos a valorização dos nossos modos de vida, usos, costumes, saberes, que são a nossa característica”, disse a representante da comunidade quilombola de Mumbuca, no Jalapão (TO), que leu a carta com as reivindicações do grupo ao final do evento. Ela citou o exemplo da Convenção 169 da OIT, que trata dos direitos de autodeterminação de povos indígenas e tribais, e o Decreto 6.040, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. “Não aceitaremos nenhuma afronta aos nossos direitos”, garantiu.
Produção – Intimamente ligadas à terra e aos recursos naturais, as populações tradicionais do Cerrado também entendem que a agroecologia é o modo de produção agrícola que melhor atende às necessidades de aproveitamento econômico e de conservação do bioma. É uma oposição ao modelo degradador do agronegócio no país. Nas últimas décadas, esse modelo, aliado ao projeto de desenvolvimento que prevalece desde os governos militares já forjou a destruição de cerca de 50% das áreas nativas do Cerrado.
A degradação atinge os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal, além dos encraves no Amapá, Roraima e Amazonas, em que está a paisagem típica do bioma. Neste espaço territorial estão as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (Amazônica-Tocantins, São Francisco e Prata). Isso representa um elevado potencial aquífero e favorece a biodiversidade, uma das maiores do planeta.
Nós, Povos do Cerrado, somos os que sempre estiveram aqui. Somos também os que chegando depois, criaram raízes profundas nessa terra. Somos o encontro entre culturas, que deu origem a novos e diferentes modos de vida. Somos aqueles que, organizados, lutamos por esta terra e para nela permanecer. Somos aqueles que por gerações aprenderam os mistérios do Cerrado, em campos, veredas e florestas, seus ciclos, sua força criadora, mas também os seus limites. Somos os que dessa terra extraem o alimento saudável e a cura. Somos aqueles que, como o próprio Cerrado, resistem à opressão e à exploração gananciosa dos que acumulam, degradam e excluem.
Somos povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, geraizeiros, raizeiras e raizeiros, vazanteiros, fecho de pasto, extrativistas, pescadores artesanais, apanhadoras de flores, agricultores familiares e trabalhadores rurais.
Juntos, durante o VIII Encontro e Feiras dos Povos do Cerrado, reafirmamos entre nós uma aliança de solidariedade e de luta por nossas causas comuns:
1. O direito à terra e ao território, como espaço de vida e condição fundamental para a conservação da biodiversidade, das águas e de nossas culturas, repudiando, assim todas as emendas constitucionais, portarias, e regulamentações que possam ameaçar esse direito, a exemplo da PEC 215 e da ADIN 3.239-9, que investem contra as formas já estabelecidas pelo Estado brasileiro de reconhecimento formal de terras indígenas e terras de quilombos.
2. O reconhecimento e valorização dos nossos modos de vida, usos e costumes, saberes e fazeres, construindo e fortalecendo os instrumentos legais e políticos para tanto, a exemplo da Convenção 169 da OIT, que trata dos direitos de autodeterminação de povos indígenas e tribais, e o Decreto 6.040, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais.
3. O fortalecimento de nossa opção pela agroecologia, como prática e princípio integrador entre natureza e cultura, em oposição ao modelo degradador do agronegócio e à mercantilização da vida.
Trabalharemos, unidos na luta e fortalecidos na união, para defender o Cerrado, suas águas e sua gente.
Viva o Cerrado, viva os Povos do Cerrado!