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“Queremos nosso Gerais livre de violências”

4 de novembro de 2019 - Cerrado - por assessorias do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN) e da Rede Cerrado

A fala é de Dilvanice das Chagas, que fez apelo durante Audiência Pública realizada para debater violências sofridas por Comunidades geraizeiras do Oeste da Bahia.

No último dia 30 de outubro, na Câmara dos Deputados, em Brasília, representantes de comunidades geraizeiras, de organizações da sociedade civil, do Ministério Público Federal, do Conselho Nacional de Direitos Humanos e do poder público estadual da Bahia se reuniram em Audiência Pública para discutir e encaminhar ações sobre um dos maiores casos de grilagem de terras do país. O momento trouxe denúncias graves de diversos tipos de violações aos direitos humanos praticados pelo megaempreendimento Condomínio Agronegócio Fazenda Estrondo contra oito comunidades localizadas na região do alto Rio Preto, município de Formosa do Rio Preto, oeste da Bahia.

Funcionários da empresa de segurança patrimonial Estrela Guia, contratada pela Estrondo, hostilizam, violentam e impedem moradores dessas comunidades de circularem pelo território. Homens fortemente armados fazem guarda e rondas pelo território tradicional e impedem a coleta de recursos naturais, como o buriti e o capim-dourado, e inviabilizam os geraizeiros de exercerem sua principal atividade econômica, a pecuária e o extrativismo.

Entenda a trajetória jurídica do caso

O Condomínio Estrondo é um dos maiores produtores de soja, algodão e milho do Brasil, tendo inclusive presentes dois silos das empresas Bunge e Cargill. O empreendimento é acusado de apropriação ilegal de 444 mil hectares de terras da região, tendo sido citada no Livro Branco da Grilagem do INCRA, em 1999. Parte dessas terras é ocupada há centenas de anos por comunidades tradicionais geraizeiras, que hoje vivenciam um dos maiores conflitos por território do Cerrado.

Em 2017, as comunidades obtiveram decisão liminar de manutenção da posse movida contra as empresas Delfim Crédito Imobiliário S/A, Cia de Melhoramentos do Oeste da Bahia (CMOB) e Colina Paulista, que administram o empreendimento da Estrondo. A liminar reconhece o direito de posse das comunidades a 43 mil hectares que tradicionalmente ocupam. Um mês depois, a Vara especializada no caso teve suas atividades encerradas por decisão da então presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Maria do Socorro Barreto Santiago. A ação foi transferida para comarca de Formosa do Rio Preto.

Em novembro de 2018, após inúmeros informes sobre a continuidade das ações de grilagem, o magistrado local, Sergio Humberto Quadros Sampaio, ao invés de multar as empresas, reduziu a área abrangida na liminar para 9.000 hectares, impondo uma série de outras medidas que inviabilizariam o pleito das comunidades. Por meio da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais do Estado da Bahia (AATR-BA), que representa as comunidades judicialmente, os geraizeiros ingressaram com novo recurso desta decisão junto ao Tribunal de Justiça em 21 de janeiro de 2019. Dois dias depois, o desembargador suspendeu a decisão do magistrado.

A drástica redução da área da medida liminar, sem justificativa razoável, não foi a única decisão feita fora do padrão pelo magistrado Sergio Humberto Quadros Sampaio. Dias antes, ele extinguiu, sem julgar o mérito, a ação discriminatória judicial interposta pela Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE), que, após trabalhos técnicos de identificação e delimitação das terras, concluiu que se trata de terras devolutas ocupadas tradicionalmente pelos geraizeiros, instaurando, por consequência, procedimento para arrecadação das terras e destinação para titulação coletiva em nome das associações comunitárias.

Na decisão, o magistrado alega que o estado da Bahia não comprovou que as terras são devolutas. No entanto, no processo judicial discriminatório de terras públicas, o exame das provas não se faz antes do processo, mas sim no seu decorrer.

Violação de direitos

“Queremos nosso Gerais livre de violências”, desabafou a geraizeira Dilvanice das Chagas durante a Audiência Pública. Ela, que disse sentir muito orgulho de suas origens, contou, emocionada, sobre as ameaças que sofrem desde 2014 por funcionários da Estrela Guia: “Nosso território não é reserva do condomínio, estamos lá há mais de 300 anos. O Gerais é um lugar sagrado para nós. Nós temos o direito de seguir lutando pela nossa terra. Pelo nosso Gerais”.

Dentre diversos episódios de abuso de autoridade e violência, a empresa é acusada de ter se valido de apoio policial para destruir e furtar uma torre de comunicação, adquirida pela comunidade para viabilizar o contato emergencial com o município mais próximo, que fica a 170 quilômetros de distância do povoado. Além disso, denúncias de prisões ilegais e até mesmo de disparos a tiros contra moradores já foram feitas.

“No dia 31 de janeiro os seguranças da Estrondo atiraram em meu esposo apenas porque ele queria alimentar o gado que eles haviam prendido, sem motivo, por três dias. Pegaram o nosso gado, colocaram em uma caçamba, e despejaram o gado em uma área a 60 quilômetros da comunidade. O gado ficou muito machucado e mais de 20 cabeças ainda não foram encontradas. Atiraram no meu esposo, prenderam meu cunhado, me agrediram.” Confira a íntegra do relato de Dilvanice.

Eduardo Nunes de Queiroz, Defensor Público Federal e membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), durante a audiência, lembrou que os casos de violência contra comunidades tradicionais são reflexo da forma descontrolada que se dá a expansão do agronegócio no Cerrado, em especial na região do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). “Isso está colocando as comunidades em situação de grande exposição. Esta casa (referindo-se ao Congresso Nacional) precisa dar atenção à forma como vem sendo conduzida e tratada pelo governo federal -em especial a fiscalização e a regulamentação – essa expansão de grandes empreendimentos agrícolas”. Além disso, ele destacou que é necessário um melhor esclarecimento sobre o processo de criminalização dessas comunidades.

Para Marco Paulo Schettino, Secretário Executivo da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, especializada em Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, este é um caso de evidentes violações de direitos. “É preciso garantir não só a posse, mas o usufruto do território. Essa posse não diz respeito só a uma posse econômica, mas de garantia do modo de vida dessas populações. O Ministério Público está acompanhando atentamente essas comunidades”, ressaltou.

Desmatamento legitimado

O representante da 10Envolvimento – uma das entidades associadas à Rede Cerrado, Martin Maryn, que acompanha o caso, denunciou que a Fazenda Estrondo se apropriou de territórios das comunidades como se fossem sua área de Reserva Legal para justificar o desmatamento desenfreado do Cerrado na área em que empreende exploração agrícola. “A Estrondo se acha legitimada a desmatar todo o chapadão [..] O oeste da Bahia pode ter alto potencial agrícola, mas antes de ser uma região de produção de grãos, é uma região de produção de água”, pontuou. A região possui enormes extensões de área de chapada, importantes para a infiltração das águas das chuvas. Ao serem desmatadas e cobertas por monoculturas, as chapadas perdem grande parte da sua capacidade de recarga de mananciais, prejudicando os cursos d’água à jusante, como o rio Preto, do qual as comunidades dependem.

Além do desmatamento desregrado, a Estrondo também usa a Reserva Legal para pressionar os geriazeiros e justificar as violências cometidas contra eles. Ao fazer o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o empreendimento transferiu parte da sua reserva para as áreas tradicionalmente ocupadas e usa isso como argumento para encurralar as comunidades, com o uso de cercas e o controle da circulação das pessoas com guaritas. “Há dois anos a justiça já decidiu que as reservas legais da Estrondo são das comunidades, mesmo assim, o governo permite a supressão das terras”, denunciou Martin.

Ao perseguir as comunidades, além do desmatamento decorrente de seu modo de produção, a Estrondo também ameaça um modo de vida que contribui par a conservação do meio ambiente. “Mesmo com uma ocupação tão antiga, a gente encontra grande cobertura de Cerrado nesses territórios, o que demonstra que o modo de vida dessas comunidades concilia produção com conservação”, comenta Isabel Figueiredo, do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), umas das organizações da Rede Cerrado que acompanha o caso.

Descaso do Estado

A representante da AATR-BA, Joice Silva Bonfim, enfatizou que o Estado brasileiro tem conhecimento dessa situação desde 1999 e “se tivesse sido tomada algum tipo de providência à época, talvez não tivéssemos uma situação consolidada do agronegócio sobre o território das comunidades”, pontuou. Ela observou que as empresas da Estrondo entraram recentemente com ações de usucapião da área, o que demonstra as contradições do empreendimento para se apropriar da terra. “Se eles dizem ser os proprietários legítimos daquela área, por que recorrer ao usucapião?”, questionou. De acordo com a advogada, há um envolvimento direto do judiciário baiano com essa situação de grilagem. “É um caso que precisa de tratamento imediato. O Estado tem envolvimento direto nas violências e atua de forma articulada. Há a omissão das autoridades de segurança pública estaduais que corroboram com o descumprimento de decisões do judiciário, além da não investigação dos casos de agressões e intimidações sofridas pelos comunitários que já foram denunciados à polícia local”, ressaltou.

Presentes na Audiência, os deputados federais Valmir Assunção (PT- BA), Joenia Wapichana (REDE – RR), Frei Anastácio (PT-PB) e Helder Salomão (PT-ES) manifestaram compromisso com a causa. Para Wapichana, a demora no cumprimento das decisões judiciais traz impactos injustos e agrava a situação das comunidades. O deputado Valmir reforçou a afirmativa e destacou a urgência de uma ação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara junto ao governo baiano. “Nós, deputados federais, temos que trabalhar para fazer uma diligência, e pressionar o governo para cumprir a decisão judicial, para agilizar a Ação Discriminatória”, destacou..

Próximos passos

Para Guilherme Eidt, assessor jurídico do ISPN, a Audiência cumpriu o objetivo de trazer visibilidade e atenção para o caso, e “trouxe um direcionamento de ações articuladas junto à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, para avançar no diálogo com as instituições de governo e Tribunal de Justiça envolvidas”.

Dentre os principais encaminhamentos da Audiência, estão:

– Realização de diligência conjuntas na região da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, com o Conselho Nacional de Direitos Humanos e Comitê Brasileiro de Defensores de Direitos Humanos;

– Requisição de informações ao Tribunal de Justiça da Bahia a respeito do cumprimento da decisão liminar de manutenção de posse do território das comunidades, e sobre o andamento da Ação Discriminatória movida pelo governo estadual;

– Representação ao Conselho Nacional de Justiça a respeito da condução das autoridades judiciais baianas no descumprimento de decisão de manutenção de posse em favor dos comunitários, e na demora de processamento da Apelação na Ação Discriminatória;

– Requisição de informações à Polícia Federal a respeito da regular atuação da Estrela Guia e utilização de armas de grosso calibre e cano longo para prestar serviço de segurança patrimonial à Fazenda Estrondo;

– Requisição de informações ao governo do Estado da Bahia a respeito da leniência da apuração das denúncias de agressões e intimidações sofridas pelos comunitários, bem como da própria atuação da polícia civil e militar na região.

– Recomendação ao INEMA (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) para a suspensão de Autorização de Supressão de Vegetação concedida à Estrondo para desmatar 25 mil hectares de Cerrado na área da chapada, uma vez que a Reserva Legal declarada é território das comunidades.

Clique aqui para assistir à transmissão completa da audiência que debateu as violências sofridas por comunidades geraizeiras do oeste da Bahia.

Foto: Acervo ISPN/Méle Dornelas

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