O bioma brasileiro mais ameaçado e o segundo com o maior número de animais em extinção; detentor das maiores taxas proporcionais de desmatamento e queimadas irregulares no Brasil; com perda de mais da metade de sua vegetação nativa em 30 anos. Esses foram dados trazidos por especialistas durante o Webinário “Convergências para o Cerrado – gestão integrada da biodiversidade e paisagens produtivas sustentáveis”, realizado em 9 de setembro pela Frente Parlamentar Ambientalista.
O evento reuniu pesquisadores, representantes da sociedade civil e parlamentares que, além de colocarem um panorama preocupante do impacto das mudanças no uso da terra e mudanças climáticas já relacionadas à savana brasileira, apontaram riscos socioambientais e econômicos para o Brasil e países vizinhos caso propostas políticas já existentes para a proteção do bioma e seus povos não sejam implementadas.
“A perda de biodiversidade está associada a perda de serviços ecossistêmicos. A agricultura brasileira é alimentada em maior parte pelas chuvas, com o crescimento do desmatamento e das queimadas, essas chuvas tendem a diminuir, e já vemos eventos de secas. Isso é um alerta para o futuro que nos aguarda se não revertermos esse processo”, alertou o professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista no Cerrado, Dr. Bráulio Dias, ex-Secretário Executivo da Convenção de Diversidade Biológica das Nações Unidas.
Segundo Mercedes Bustamante, professora da UnB, “é possível avançar na agricultura sem avançar em novas áreas de vegetação”. A pesquisadora ressalta a importância da restauração florestal para conter os efeitos da destruição do Cerrado. A maior cobertura de vegetação nativa aumenta o retorno de umidade para a atmosfera e diminui as consequências das mudanças climáticas. Mercedes destaca que “55% das áreas de pastagem têm boa potencialidade de recuperação”, no entanto, é preciso que instrumentos de gestão territorial e incentivos sejam regulamentados para avançar nos programas de regularização ambiental e cumprimento das metas de restauração assumidas no âmbito do Acordo de Paris.
A seca ocasionada pela destruição do Cerrado já é realidade em regiões mais ameaçadas, a exemplo do Oeste da Bahia, segundo alerta Isabel Drigo, pesquisadora no Imaflora. A especialista também alertou para a importância da valoração econômica da natureza como uma estratégia para incluir os benefícios dos serviços ambientais no planejamento de políticas públicas e ações do setor agropecuário. Não se trata de colocar preço na natureza, mas de reconhecer o valor da provisão de água, polinização e da própria biodiversidade para o conjunto da sociedade. “A vegetação nativa em pé importa. Se o fazendeiro não tiver a porção da vegetação nativa, haverá piora na qualidade de seus produtos, ele vai precisar irrigar mais para produzir, o que gera mais gastos”, explica.
O setor produtivo que levou à expansão das commodities sobre o Cerrado hoje é chamado à responsabilidade em diversas iniciativas de mercado, sobre o olhar internacional, cada vez mais preocupado com as questões da biodiversidade, e as condutas empresariais nas cadeias de suprimento em relação ao meio ambiente. O diretor de Conservação e Restauração do WWF-Brasil, Edegar de Oliveira Rosa, lembrou a iniciativa “Statement of Support for the Cerrado Manifesto” (SoS Cerrado), atualmente assinado por cerca de 160 empresas globais de FMCG (sigla em inglês para “produtos de giro rápido”) e investidores institucionais.
O Manifesto Cerrado envia uma mensagem clara de que existe um apoio generalizado da indústria para travar o desmatamento no Cerrado, adotar práticas sustentáveis de gestão dos terrenos e mitigar os riscos financeiros associados ao desmatamento e às alterações climáticas. Edegar também apontou que a própria Comunidade Européia já aprovou legislação nesse sentido, e países europeus como a Inglaterra, hoje, debatem coibir a importação de produtos vindos de áreas com situações de desmatamento.
As implicações sociais, econômicas e ambientais da devastação do Cerrado estão associadas ao avanço de maneira desordenado da mineração, agropecuária e dos grandes projetos de infraestrutura, além da invasão de espécies exóticas e dos incêndios criminosos. Os especialistas sinalizaram que a falta de vontade política para a aprovação de projetos de lei, que ampliem a conservação do Cerrado e a proteção dos seus povos, potencializa essas ameaças. Elas podem ser evitadas com planejamento e governança ambiental fortalecidas.
O professor Bráulio celebrou o Código Florestal brasileiro como uma ferramenta sofisticada para a conservação do bioma, mas sozinho não é suficiente para proteger o Cerrado. Segundo dados do Imaflora 44 milhões de hectares de vegetação nativa no bioma ainda podem ser derrubados, considerando o percentual de proteção de apenas 20% em áreas de Reserva Legal nas propriedades rurais. A região do Matopiba é a principal fronteira de expansão do agronegócio no Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e segundo lembrou o professor, a especulação imobiliária é um forte vetor dessa expansão.
Se a falta de vontade política prejudica o controle e esvazia os incentivos econômicos para a conservação, diante de um governo que compreende políticas ambientais como contrárias aos propósitos de desenvolvimento econômico, uma resposta do legislativo se torna uma esperança para conquistas ecossociais. Entre os projetos que tramitam no Congresso Nacional, destaca-se a Proposta de Emenda à Constituição 504/2010. Conhecida como “PEC do Cerrado e da Caatinga”, o texto inclui os biomas no rol de patrimônios nacionais da Carta Magna brasileira. A consultora legislativa aposentada, Suely Araújo, ex-presidente do Ibama, representante do Observatório do Clima, registrou que a emenda tem mais de uma década de tramitação, porque a Frente Parlamentar Agropecuária dificulta sua aprovação. No entanto, agora Suely vislumbra uma oportunidade para renovação da pressão da sociedade civil nesse tema, frente à magnitude da repercussão internacional do desmonte promovido pelo governo federal na área ambiental, e a movimentação de investidores e empresas cobrando uma resposta do Presidente da Câmara dos Deputados, o Dep. Rodrigo Maia.
O coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, Dep. Rodrigo Agostinho, lembrou que uma “Agenda Verde” está sendo gestada no parlamento, e, embora para alguns projetos de lei já existam condições para aprovação, para outros ainda é necessário a construção de acordos e a composição entre as forças políticas dos diferentes setores representados no Congresso. É o caso do Projeto de Lei 3338/2019, chamado de “PL do Cerrado”, um texto de autoria do Dep. Agostinho, fruto de construção coletiva, que dispõe sobre a conservação, o uso sustentável e a restauração da vegetação nativa do bioma. Para essa aprovação, Araújo ressalta a necessidade delicada de se fazer acordo com os ruralistas.
Resultados de pesquisa preliminares com levantamentos bibliográficos, divulgados pela professora Mercedes Bustamante, apontam que no Cerrado há 5% de terras indígenas e, ao menos, 636 comunidades tradicionais, quilombolas, fundo e fecho de pastos, vazanteiras, geraizeiras e agroextrativistas, localizadas em 108 municípios do bioma. O assessor em políticas públicas do ISPN, Guilherme Eidt, destacou que o conjunto desses povos e comunidades promovem em seus territórios meios de vida que propiciam o uso sustentável dos recursos da natureza e alcançam resultados expressivos para manutenção dos ecossistemas, a conservação da biodiversidade e a regulação do clima. Áreas e territórios esses que apresentam reduzidas taxas de desmatamento, conservam mais áreas remanescentes de vegetação nativa, conservam espécies, provém alimentos, contribuem para recarga de aquíferos e mananciais d’água, além de estocar carbono, entre tantos benefícios para natureza.
Para o assessor do ISPN, o reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados é um dos pontos centrais no debate em torno da aprovação do PL do Cerrado, pois, como disse Mercedes Bustamante, “os sistemas ecológicos e os sistemas sociais estão em perigo de danos irreparáveis”. “A saúde e a sobrevivência de um depende da saúde e da sobrevivência de outro”, afirmou a pesquisadora. Proteger os povos do Cerrado é proteger o bioma e pensar em um futuro soberano para o país.
A importância do debate realizado pela Frente Ambientalista foi ressaltada por Eidt, que sinalizou ganhos socioambientais, políticos e econômicos na busca de convergências para a conservação do Cerrado. Trata-se de uma responsabilidade que deve ser compartilhada por produtores agrícolas, consumidores, traders, frigoríficos, redes varejistas, fornecedores de insumos. “A conservação do Cerrado trará benefícios para todos”, concluiu.