O Cerrado brasileiro é um Bioma estratégico, principalmente, para a manutenção dos ecossistemas e ciclos hídricos que abastecem várias regiões do Brasil. A Savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado concentra 5% de toda a biodiversidade do planeta e abastece as principais bacias hidrográficas do país. Apesar de toda a sua relevância, o Bioma vem sofrendo, há décadas, com o forte avanço das fronteiras agropecuárias e já viu metade da sua vegetação natural ser derrubada.
Para falar sobre este assunto, a Rede Cerrado (RC) entrevistou a pesquisadora Mônica Nogueira. Ela que é Antropóloga por formação, concluiu mestrado em Desenvolvimento Sustentável e doutorado em Antropologia, encontrou no Cerrado sua morada. Natural de João Pessoa, na Paraíba, foi ainda pequena, viver na cidade encravada no coração do Bioma, Brasília, no Distrito Federal. Mesmo rodeada pelas paisagens, por meses, tipicamente secas do Cerrado, ela despertou para o Bioma quando ingressou como técnica no Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Rendeu-se as riquezas, cheiros, culturas e sabores quando, por cerca de 15 anos, vivenciou mais de perto as realidades, principalmente dos povos e das comunidades tradicionais, a partir do trabalho desenvolvido junto a Rede Cerrado.
O Cerrado, para mim, material e simbolicamente, é uma referência de resiliência, que me inspira e me faz compreender aspectos importantes da vida. Me inspira a desenvolver a resiliência em mim mesma. Eu tenho uma profunda admiração por esse Bioma, pela sua história, pelos seus povos, pelas suas paisagens. É o Bioma onde eu fiz a minha casa. É o meu lugar no mundo. Eu não nasci aqui, mas fui criada em Brasília desde bebê. Embora a minha atenção para o Cerrado só tenha sido despertada na vida adulta, foi muito importante, para me conformar como sujeito, a experiência que tive por vários anos. A partir de Brasília, ir a vários outros lugares no interior desse Bioma, conhecer muitas comunidades nos outros estados, poder vivenciar pessoalmente toda a diversidade sociocultural e biológica do Cerrado enriqueceu muito a minha vida, ampliou os meus horizontes e fez com que eu estabelecesse relações de afeto profundas com pessoas, lugares e paisagens. Ele se tornou a minha casa no mundo. O meu lugar, assim como é o lugar de muita gente que é importante para mim e isso me gerou uma forte disposição de sempre trabalhar pela defesa do Cerrado, dos seus povos e de suas comunidades tradicionais. Sem dúvida é o lugar pelo qual me sinto inclinada para lutar sempre.
Hoje, o que mais ameaça o Cerrado, com toda a certeza, é o desmatamento associado ao avanço das fronteiras agropecuárias, dos monocultivos de soja, algodão e eucalipto. O Cerrado, atualmente, tem apenas 50% da sua vegetação original em pé e segue sendo alvo de políticas de apoio ao avanço da fronteira agropecuária. Dados recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais indicam que as taxas de desmatamento no Bioma seguem crescendo ano a ano. De 2017 para 2018 houve um aumento de 9%. É claro que devemos comemorar o fato de, pela primeira vez, a gente conseguir fazer um monitoramento do desmatamento no Cerrado de forma detalhada, mas os dados ainda não são animadores. É preciso destacar neste cenário a constituição do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), considerado a última fronteira agrícola do país. Uma área extraordinária, superior a da Alemanha. São cerca de 70 milhões de hectares destinados a potencializar a produção de grãos no Brasil.
Ocorre que nessas áreas nós temos dezenas de terras indígenas, centenas de assentamentos da reforma agrária, territórios quilombolas afetados diretamente pela constituição dessa nova fronteira para a agricultura de larga escala no Brasil. O MATOPIBA, sem dúvida, hoje, é a maior ameaça ao Bioma.
Há projeções do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) que indicam que até 2022 o Brasil deve plantar cerca de 70 milhões de hectares de lavouras e nós sabemos que a expansão dessa agricultura de larga escala continuará crescendo justamente sobre o Cerrado e MATOPIBA, que é um território definido estrategicamente neste plano de expansão da agricultura de larga escala no Brasil.
O MATOPIBA é a maior representação da reprodução de um modelo de degradação associada à injustiça ambiental com povos e comunidades tradicionais no Cerrado. Estabelece-se um território de expansão de agricultura de larga escala, voltada para a exportação que absolutamente não gera riquezas para as populações locais, sobretudo povos e comunidades tradicionais que sofrem com a expropriação e os efeitos negativos da degradação ambiental decorrente desse modelo de desenvolvimento.
Não é um exagero dizer que MATOPIBA é a maior área de desmatamento do Brasil hoje.
Só a área plantada com soja no nessa região cresceu mais de 200% entre os anos 2000 e 2014. Essa é uma situação que pede atenção imediata da população brasileira tendo em vista os serviços ecossistêmicos prestados pelo Cerrado à sociedade, com destaque para os processos relativos ao abastecimento de água para o Brasil.
Se o desmatamento no Cerrado continua nessas proporções toda a sociedade brasileira será afetada, sobretudo com os efeitos sobre a água. O Cerrado é um Bioma muito importante para o equilíbrio hídrico nacional. Em função das suas características, ele contribui para o acúmulo de água, forma aquíferos, alimenta três dos maiores aquíferos do mundo: o Guarani, o Urucuia e o Bambuí. É a região de nascentes de grandes bacias hidrográficas, três das maiores da América do Sul: São Francisco, Tocantins-Araguaia e Paraná.
O equilíbrio hídrico nacional é dependente da manutenção da vegetação nativa do Cerrado.
Essa é a primeira e mais importante consequência que tem sido apontada com muita força pelos movimentos de base. Claro, devemos também defender a biodiversidade, os direitos territoriais dos povos e das comunidades tradicionais, mas esse desmatamento vai gerar efeitos na disponibilidade de água que vai afetar a toda a sociedade brasileira. Achamos que, lamentavelmente, esse aspecto ainda não está devidamente compreendido pela nossa sociedade. E, sobretudo, não é bem compreendido pelas autoridades e órgãos públicos competentes, haja vista, ainda, a marginalidade do Cerrado nas políticas ambientais brasileiras.
O desmatamento, naturalmente, também nos ameaça para outras perdas igualmente significativas, como a perda da biodiversidade, que até então não é plenamente conhecida em suas finas interações ecológicas entre seus elementos, nas suas potencialidades para a alimentação e para produção de remédios, para outras formas de viver e de desenvolvimento.
Perdemos também um amplo e rico acervo histórico e cultural decorrente da ocupação milenar desse Bioma, primeiro por povos indígenas, depois por comunidades negras rurais e por outras comunidades decorrentes de intercruzamentos culturais e que desenvolveram formas particulares de vida adaptadas ao Cerrado, em estreita interação com as suas paisagens e que poderiam ampliar a nossa humanidade.
Perder o Cerrado para desmatamento é perder em natureza e humanidade, a meu ver.
Os povos e comunidades tradicionais (PCTs) são os que habitam historicamente as paisagens do Cerrado, tendo estabelecido com elas uma relação profunda, amplos acervos de conhecimentos sobre os elementos constitutivos dessas paisagens, das finas relações ecológicas desses elementos, de modo que são grupos humanos que estabeleceram relações de afeto, conhecimento e responsabilidade em relação a essas paisagens. Que se constituem como sujeitos identificados com essas paisagens. Isso estabelece entre os PCTs uma forte inclinação para a defesa do Cerrado.
Esse lugar é o lugar que te constitui como sujeito com o qual você tem relações de interdependência em várias dimensões da vida, não só a interdependência material, mas a simbólica.
Nesse sentido, claro que os povos e as comunidades tradicionais têm um papel fundamental na defesa do Cerrado, por serem os grupos humanos conhecedores do Bioma, dispostos a zelar por ele e a informar sobre caminhos para se estar e viver no Cerrado sem comprometer a sua existência e continuidade. Povos que de maneira muito aguda compreendem a ameaça que paira sobre o Bioma e que têm tentado com todas as forças alertar a sociedade sobre esse grande risco da perda da biodiversidade, das águas, desse cataclisma que pode representar a continuidade dessa degradação sobre o Cerrado.
Os povos e as comunidades tradicionais são os principais defensores do Bioma, a meu ver, porque fazem isso com muita bravura, com muita coerência. Eu diria que são o nosso alter ego, a nossa consciência mais profunda sobre o que significa essa ofensiva contra o Cerrado e quão trágica pode ser a eliminação desse Bioma.
Eu sempre tendo a pensar a Rede Cerrado (RC) com um campo de articulação social e política fundamental para coordenar esforços, colocar lado a lado povos e comunidades tradicionais, organizações de assessoria e da sociedade civil, sindicatos e cooperativas, pessoas, intelectuais, gestores públicos que transitam nesse campo. Podem não ser associados à RC, mas no campo mobilizado por ela interagem lideranças e organizações que estabelecem alianças para a defesa do Bioma e dos seus povos.
Sem dúvida, a Rede Cerrado foi fundamental para impulsionar um debate sobre a conservação do Bioma com atenção aos seus povos e comunidades tradicionais, com atenção aos direitos territoriais desses povos e seu papel na defesa do Cerrado. Isso é uma contribuição histórica.
Uma das grandes contribuições da RC nesse processo de defesa do Bioma foi projetar os povos e comunidades tradicionais, afirmar a importância do seu protagonismo na luta em defesa do Bioma. Ao afirmar a importância dos povos e comunidades tradicionais, ao projetar publicamente a trajetória e a luta desses povos, a Rede Cerrado recoloca os termos da questão sobre a necessária conservação do Cerrado: um Bioma que deve ser defendido por inteiro. Deve ser mantido de pé com os seus povos dentro.
Uma grande contribuição dada pela RC é a afirmação da conservação nesses termos, a conservação do Cerrado com seus povos, com uma especial atenção para os direitos territoriais e do reconhecimento que esses povos têm para a conservação do bioma.
O trabalho que a Rede Cerrado tem feito, por duas décadas, de visibilizar o Cerrado na sua diversidade sociocultural e biológica é fundamental, porque nós precisamos superar uma representação social sobre esse Bioma como pobre, desabitado, cujo melhor destino seja o avanço da fronteira agropecuária. Então, a RC tem cumprido um papel muito importante de visibilização e de promoção da tomada de consciência da sociedade brasileira para a importância do Cerrado e nos termos adequados.
É um bioma que precisamos defender por inteiro! Ou seja, isso significa defender também os seus povos em seus direitos territoriais e no papel que têm desempenhado historicamente para a manutenção de toda essa riqueza sociocultural e biológica.
A Rede Cerrado também tem garantido um espaço importante de encontro entre comunidades profundamente ameaçadas pelo avanço da fronteira, pelos processos de degradação do Bioma. Estar no campo da RC, para essas comunidades, tem representado reconhecer pares, perceber que não se está sozinho e há outro, em outro estado, mas que vivencia situações igualmente difíceis.
Vale destacar, ainda, o papel que a Rede Cerrado cumpre na formulação de políticas públicas relacionadas diretamente com o Bioma. Por exemplo, A RC investiu muito esforço na construção da Política de Desenvolvimento Sustentável do Cerrado, que foi uma política que se instituiu a partir de provocações da própria Rede Cerrado ao Ministério do Meio Ambiente. Lamentavelmente, ela não decolou em razão da posição intencionalmente marginal que o Cerrado tem na política ambiental brasileira. E eu destaco o caráter intencional, porque nós sabemos que isso tem a ver com as correlações de força, e como o Cerrado é o Bioma escolhido para receber o avanço das fronteiras brasileiras, ele tem tido muita dificuldade de se afirmar no campo das políticas ambientais.
Em geral, o Cerrado é tido como uma moeda de troca em favor de outros biomas, como a Amazônia e a Mata Atlântica. Em alguns governos, chegou a ser apagado dos discursos oficiais. Falava-se em Centro-oeste, mas nunca em Cerrado.
Em um ano de eleições, eu diria que é preciso tomar conhecimento do projeto de desenvolvimento que está em curso no Brasil, baseado na produção de commodities, na superexploração dos nossos recursos, na acumulação ainda primitiva de capital. Um modelo de desenvolvimento que nos diminuiu enquanto uma comunidade de destino, que diminuiu os nossos horizontes como um povo e uma nação, reproduz as piores práticas coloniais e nos retira muita das nossas possibilidades de futuro.
Então, é importante tomar conhecimento disso, que esse é um modelo que afeta, de sobremaneira, o Cerrado e seus povos.
Na medida em que a sociedade brasileira tome conhecimento desse perverso modelo de desenvolvimento que está em curso, possa, também, tomar decisões mais interessantes nas próximas eleições. Decisões que possam reverter esse quadro e aí, sem dúvida, o Cerrado e seus povos serão beneficiados e ganharão um fôlego para seguir na luta. Acho que essa seria a principal maneira de contribuir para a conservação do Cerrado. Tomar consciência das problemáticas que o afetam e fazer jus à possibilidade de disputar amplamente a continuidade desse modelo pelo voto nessas eleições.
Acredito ser importante, também, se inteirar de toda essa riqueza sociocultural e biológica, apoiar as comunidades por meio do consumo dos produtos que elas geram a partir do uso sustentável da biodiversidade e do Cerrado. Apoiar na replicação das muitas campanhas que circulam pelas redes sociais e as informações da mídia alternativa sobre os processos e muitas lutas que estão em curso no Bioma.
Também por meio da educação dos nossos filhos, netos, renovando as representações desse Bioma. Na medida em que a se apropria da longa história do Cerrado que é um dos mais antigos do Brasil, da história da ocupação dos seus povos originários, de como constituíram suas paisagens e de toda a riqueza que foi sendo gestada… Que isso possa ser transmitido às novas gerações. Com certeza, essa é uma forma muito interessante de contribuir com a conservação do Cerrado.
Precisamos conquistar mentes e corações e nada melhor que fazer isso por meio daqueles que chegam e seguem, para que eles possam ter uma compreensão mais generosa sobre o Cerrado e seus povos.
Vou me valer de uma frase de Guimarães Rosa que disse: “quem desconfia fica sábio”. Então, eu convido a quem ainda não conhece o Cerrado e parte de pressuposto de que ele é um Bioma feio e pobre que desconfie! Depois se lance, que possa se aventurar pelas suas ricas paisagens, que possa se banhar nas suas cachoeiras, que possa ter contato com as muitas culturas que dele emergem. Que possam saborear novos alimentos tão marcantes nos seus sabores e cheiros. Eu convido essas pessoas a se aventurarem e a desvelarem a realidade nos interiores deste país, nessa área que, afinal, é o coração do Brasil que bombeia vida. Tenho certeza que será lindo!