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Cerrado e povos tradicionais: perspectivas para os próximos anos

11 de março de 2019 - Cerrado - Thays Puzzi / Assessoria de Comunicação Rede Cerrado

Muito se especulou sobre área socioambiental durante o processo eleitoral para a Presidência da República em 2018. A principal delas, talvez, foi a proposta de extinção do Ministério do Meio Ambiente (MMA), pelo então presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Fruto de mobilizações, tanto por parte de organizações da sociedade civil quanto de aliados do agronegócio, o Ministério resistiu. Contudo, ações adotadas pelo Governo Federal já no primeiro dia de mandato, como a Medida Provisória (MP) 870/2019, se mostram adversas às reais necessidades do Cerrado, seus povos e comunidades tradicionais.

A MP 870 alterou as atribuições e a estrutura dos ministérios e dos órgãos ligados à Presidência da República. Por exemplo, não existe mais dentro do MMA o núcleo de combate ao desmatamento, queimadas e desertificação, criado na década de 1980. Já não é novidade que o Cerrado é um dos biomas que mais sofre com o desmatamento no Brasil. Dados de 2018 do próprio MMA comprovam que cerca de 50% da vegetação nativa do Cerrado não existe mais. Grande parte é fruto do avanço indiscriminado do agronegócio na região.

“Vejo com grande preocupação as mudanças administrativas, não só na área ambiental, mas também em órgãos encarregados de povos indígenas e tradicionais. A nova configuração esvazia funções importantes do Ministério do Meio Ambiente e pode resultar em menos proteção a setores mais vulneráveis da população brasileira”, destacou Mercedes Maria da Cunha Bustamante, bióloga e professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB).

De acordo com ela, o Cerrado está, particularmente, mais vulnerável, pois é menos protegido que a Amazônia, por exemplo, no âmbito do Código Florestal. “Além disso, tem um percentual menor de áreas protegidas e sofre maior pressão de expansão do agronegócio, principal vetor de conversão de áreas naturais no Cerrado. Adicionalmente, conta com uma grande diversidade social que depende da conservação dos recursos naturais”.

Mas não são somente os povos e comunidades tradicionais que dependem da existência e conservação do Cerrado. O bem-estar da população brasileira é dependente da integridade e saúde dos ecossistemas naturais, no caso do Cerrado, principalmente para o suprimento de água, regulação climática, polinização, controle de vetores de doenças e pragas. “Uma gestão que não considere a complexidade de tais interações compromete diretamente a qualidade de vida da população”, observou Mercedes.

Com as mudanças na área socioambiental, os impactos acabam sendo mais pesados para os povos originários e tradicionais. Com o fim da Secretaria de Extrativismo, por exemplo, não se sabe qual será o futuro da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), reconhecida como uma das políticas ambientais mais importantes do Brasil. Outra reforma que impacta diretamente os povos indígenas é a transferência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), antes subordinada ao Ministério da Justiça, para a pasta da Família, Mulher e Direitos Humanos. Além disso, a demarcação de Terras Indígenas e a atribuição de opinar sobre o licenciamento ambiental de projetos com impactos sobre essas áreas foram transferidas do órgão indigenista para a nova Secretaria de Assuntos Fundiários (SEAF) do superministério da Agricultura (MAPA), comandado pelo agronegócio. “Sem uma atuação responsável do setor na busca do balanço entre as várias demandas de uso do território, os conflitos tendem a se acentuar e os prejuízos afetarão o próprio setor do agronegócio”, alertou a bióloga.

Em reportagem, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) mostrou que, no início de 2019, pelo menos seis terras indígenas já sofrem com invasões e ameaças de invasão. Em um movimento de defesa e garantia de direitos, o Plenário do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) aprovou, por maioria, em fevereiro, a Recomendação nº 02/2019, que trata da identificação, delimitação, demarcação e registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, assim como o licenciamento ambiental nas terras indígenas, permaneçam como área de competência da FUNAI.

Hiparidi Toptiro, coordenador geral da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC), demonstra grande preocupação com os impactos que essas mudanças podem gerar. O principal deles é o apoio declarado do atual governo ao agronegócio, inclusive como prática para os povos originários. “Alguns povos indígenas já estão aderindo às práticas do agronegócio na região do Mato Grosso e isso é preocupante para nós”. Para ele, o maior impacto do agronegócio na vida dos indígenas, além dos males causados pelo uso de agrotóxicos, é a mudança na estrutura social.

“Altera o nosso modo de vida e a prática da agricultura tradicional. Há mudanças de comportamentos e de hábitos, principalmente por parte dos jovens. Eu não sou contra. O problema é que eles violentam o nosso modo de viver e não levam em consideração a diversidade que há entre os povos indígenas”.

Outra medida que está preocupando os povos originários é a municipalização da saúde indígena. “Foi uma prática que já existiu e não deu certo. Quem são os prefeitos das nossas cidades? São os fazendeiros. Os vereadores são os filhos dos fazendeiros”, argumentou. Srewe Xerente, coordenador da MOPIC no Tocantins, reforça que os direitos indígenas não podem ser misturados com questões políticas. “É preciso que a gente tenha autonomia enquanto povo. Ser autônomo e ter participação direta nas decisões que nos impactam”.

Outro povo tradicional que pode sofrer sérios impactos é o quilombola. O principal deles é que Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pela titulação dos quilombos em âmbito federal, agora também está vinculado à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF), do MAPA. Quem está à frente dessa secretaria é o presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antônio Nabhan Garcia. A UDR surgiu na década de 1980 como reação à reforma agrária e aos movimentos camponeses e trabalhadores rurais. “Nós lutamos para fazer valer os nossos direitos previstos na Constituição Federal (Decreto Federal 4.887/03). Nós temos direito de continuar em nossas terras, de cultivar a partir dos nossos modos de vida, como nós aprendemos com os nossos ancestrais. E isso precisa ser respeitado”, destacou Sandra Pereira Braga, que vive no Quilombo Mesquita, localizado na Cidade Ocidental (GO), e também é coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

“A nossa luta é comum à luta dos indígenas e de todos os povos tradicionais. Nossos territórios são os mais conservados. Precisamos do Cerrado não só para a nossa sobrevivência, mas pra a sobrevivência de todos. Conservar o Cerrado é dever de todos os brasileiros”.

O prazo para apresentação de emendas à MP 870 terminou no dia 11 de fevereiro. Foram apresentadas 500 propostas de alteração na norma. Uma comissão mista foi formada para montar um Projeto de Lei de Conversão (PLV) da medida. Somente depois disso segue para o plenário da Câmara e, de lá, para o Senado. Toda a tramitação deve ocorrer em 60 dias, podendo ser prorrogado por mais 60. Caso contrário, a MP perde a validade. Até a publicação desta reportagem, a MP não havia entrado no Congresso Nacional.

A Rede Cerrado conta com o apoio do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF, na sigla em inglês para Critical Ecosystem Partnership Fund) e do DGM Brasil – Mecanismo de Apoio Dedicado a Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas e Comunidades Tradicionais do Cerrado Brasileiro.

*Reportagem produzida originalmente para a Revista Xapuri

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