Mistificado durante décadas como um Bioma pobre, de terra improdutiva, tempo seco e árido, o Cerrado brasileiro vem tentando sobreviver frente ao forte avanço do capital, que desde a década de 1970 expande, sem freio, monoculturas de soja, eucalipto, cana-de-açúcar. Milhões de quilômetros de pastagens destinadas exclusivamente à pecuária e ainda enormes porções de áreas devastadas pela mineração Visto hoje como sendo a última fronteira agrícola do Brasil, o Cerrado já viu metade da sua vegetação nativa ser destruída.
A construção do discurso de que árvores pequenas e retorcidas de nada servem esconde as profundezas das raízes que garantem o abastecimento dos maiores reservatórios de água do país. O clima seco e árido foi destacado para não revelar toda sociobiodiversidade que o Cerrado concentra.
O Cerrado é o segundo maior Bioma brasileiro, ocupa 24% do território nacional e é considerado a savana mais biodiversa do mundo, concentrando 5% de toda a biodiversidade do planeta. Ele está presente em onze estados brasileiros: Minas Gerais, Goiás, Tocantins, Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí, São Paulo, Paraná, Rondônia, além do Distrito Federal. Nele vivem cerca de 25 milhões de pessoas, dentre elas, milhares de povos e comunidades tradicionais, distribuídas em 1.330 municípios.
“Mas ele segue sendo alvo de políticas de apoio ao avanço da fronteira agropecuária. Dados recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais indicam que as taxas de desmatamento no Bioma seguem crescendo ano a ano. De 2017 para 2018 houve um aumento de 9%. É preciso destacar neste cenário a constituição do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), considerado a última fronteira agrícola do país. Uma área extraordinária, superior à da Alemanha. São cerca de 70 milhões de hectares destinados a potencializar a produção de grãos no Brasil”, destacou Mônica Nogueira, antropóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB).
Se o desmatamento no Cerrado continua nessas proporções toda a sociedade brasileira será afetada, sobretudo com os efeitos sobre a água, alertou Mônica. De acordo com ela, o Cerrado é um Bioma muito importante para o equilíbrio hídrico nacional. “Em função das suas características, ele contribui para o acúmulo de água, alimenta três dos maiores aquíferos do mundo: o Guarani, o Urucuia e o Bambuí. É a região de nascentes de grandes bacias hidrográficas, três das maiores da América do Sul: São Francisco, Tocantins-Araguaia e Paraná. O equilíbrio hídrico nacional é dependente da manutenção da vegetação nativa do Cerrado”.
Na contramão do atual modelo desenvolvimentista, os modos de vida de povos e comunidades tradicionais mostram que é possível produzir com sustentabilidade e conservação da biodiversidade. No Cerrado, vivem mais de 80 etnias indígenas, além de quilombolas, trabalhadoras e trabalhadores extrativistas, geraizeiros e geraizeiras, vazanteiros e vazanteiras, quebradeiras de coco, ribeirinhos e ribeirinhas, pescadores e pescadoras artesanais, barranqueiros e barranqueiras, fundo e fecho de pasto, sertanejos e sertanejas, ciganos e ciganas, entre tantos outros.
Esses povos e comunidades de cultura ancestral vivem, principalmente, do extrativismo, do artesanato e da agricultura familiar. Seus modos de vida são importantes aliados na conservação dos ecossistemas, pois formam paisagens produtivas que proporcionam a continuidade dos serviços ambientais prestados pelo Cerrado. “Nesse sentido, claro que os povos e as comunidades tradicionais têm um papel fundamental na defesa do Cerrado, por serem os grupos humanos conhecedores do Bioma, dispostos a zelar por ele e a informar sobre caminhos para se estar e viver no Cerrado sem comprometer a sua existência e continuidade”, observou Mônica.
Em meio à uma das maiores crises sanitárias vividas pela humanidade – a pandemia do novo coronavírus (Covid-19) -, o Dia Mundial do Meio Ambiente, instituído pela ONU em 1972, traz para o centro dos debates a biodiversidade.
Acesse aqui o site do Dia Mundial do Meio Ambiente 2020
Neste contexto, vale destacar que para o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a Covid-19 “é um lembrete de que a saúde humana e a saúde do planeta estão intimamente ligadas”. De acordo com a agência, existem cerca de 8 milhões de formas de vida na Terra, das quais os humanos são apenas uma. Isso inclui cerca de 1,7 milhão de vírus não identificados. Vírus e outros patógenos podem se espalhar facilmente entre animais que são mantidos juntos ou para os serem humanos que os manuseiam, transportam, comercializam ou os consomem.
Onde os ecossistemas são saudáveis e biodiversos, eles são resilientes, adaptáveis e ajudam a regular doenças. A melhor maneira de nos protegermos de novos coronavírus é impedindo a destruição da natureza, que impulsionam a propagação de doenças.
Ainda conforme o PNUMA, a diversidade genética cria resistência a doenças entre populações animais e diminui as chances de surtos de doenças animais de alto impacto. Por outro lado, a pecuária intensiva pode produzir semelhanças genéticas entre rebanhos, diminuindo a resiliência e tornando-os mais suscetíveis a patógenos. Isso, por extensão, expõe os seres humanos a um risco maior.