O barracão coberto de palha, erguido por moradores da própria comunidade, até aquele momento, não era espaço comum do quilombo. A vontade de ter um lugar para festas, tambores e partilhas, até aquele momento, não havia se concretizado. Foi só chegar a notícia de que o Seminário Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais ocorreria ali, naquele chão de terra batida, de poeira solta pelo sol, que… Pronto! Mãos, braços, pernas, ombros, em meio a algumas ferramentas, mobilizaram aquele povoado que, em um esforço coletivo, em poucos dias, colocou aquele barracão de pé. Assim como em poucos minutos as faixas foram colocadas indicando qual era o caminho. A cozinha que era livre tinha brasa acesa noite e dia. Comida boa, de verdade e aos tantos. A casa estava pronta. Os povos que chegariam de todas as partes do Brasil já podiam, muitos com suas redes, se “achegar”.
A comunidade quilombola de Monte Alegre, localizada no município de São Luís Gonzaga, no interior do Maranhão, já estava em festa quando, entre os dias 3 e 5 de julho, recebeu em sua terra cerca de 200 pessoas, entre conselheiros dos povos e comunidades tradicionais (PCTs), movimentos sociais parceiros, apoiadores nacionais e internacionais, além da comunidade. Mais de 13 estados brasileiros estavam ali representados. Para quê? Avaliar a Política Nacional de PCTs e discutir uma agenda comum para o Conselho Nacional, que apesar de nunca ter sido empossado pelo Governo Federal, iniciou as atividades em busca do bem viver para as quase cinco milhões de pessoas que resistem pela existência dos costumes tradicionais.
O Quilombo de Monte Alegre, ao longo dos três dias de intensos estudos e debates entre as comunidades tradicionais, acolheu e foi acolhido. Um território marcado pela luta de um povo que desde 1870 resiste naquele chão, de geração em geração, pelo direito de permanecer na terra que lhes é comum. Que lhes é sagrada.
Mas um dia nessa história ficou tristemente marcado. Os olhos estarrecidos dos que estavam lá viram 97 casas da comunidade, que na época eram todas de palha, pegando fogo. Como quem marca um boi com ferro quente, aqueles homens marcaram centenas de corações que nunca puderam esquecer aquele 12 de novembro de 1979.
Batismo de fogo: quando violações de direitos ultrapassam décadas
“Foi o estado quem mandou botar fogo. O latifundiário não vinha, passava todo dia, mas não fazia nada. O pistoleiro passava todo o dia, mas não fazia nada, mas a juíza do meu município, São Luís Gonzaga, expediu uma liminar e mandou o oficial de justiça que veio até o fazendeiro que contratou o Batalhão do Livramento, maior policiamento que existia aqui para colocarem fogo nas nossas casas. A polícia era do estado, a juíza era do município, o oficial de justiça era do município, o prefeito era do município, então, foi o próprio estado que fez esse massacre com a gente”, relembra Maria de Jesus Bringelo, a Dona Dijé, mulher, negra, quilombola, quebradeira de coco, uma das lideranças de Monte Alegre.
Seu Cassiano, companheiro de luta de Dona Dijé, relembra toda a história daquele território que é apenas um dos milhares de exemplos de violações de direitos que existem contra povos e comunidades tradicionais.
Violações que ocorriam na década de 1970, durante a Ditadura Militar, e que também ocorrem agora, 2018, em um estado dito democrático e de direitos. De acordo com o Caderno Conflitos no Campo, lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), 2017 concentrou o maior número de assassinatos em conflitos no campo dos últimos 14 anos. Foram 71 assassinatos, 10 a mais que no ano anterior, quando foram registrados 61 casos.
Por isso, avaliar a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, criada em 2007 a partir do nº Decreto 6.040, foi um dos pontos chave de todo o encontro.
O objetivo da política é garantir e fortalecer os direitos desses povos, tendo como perspectiva a valorização de suas identidades. No entanto, desde a sua criação, apenas algumas das ações foram concretizadas, como a criação do Plano Nacional para a Promoção dos Produtos da Sociobiodiversidade, uma conquista dos PCTs para a valorização dos seus produtos.
A implementação da política é uma das ferramentas fundamentais de combate ao estado de violência e violação de direitos pelos quais muitos povos e comunidades tradicionais passam de norte a sul do país. Dentre os pontos que aguardam implementação, o principal é o eixo referente à regularização fundaria, que torna os PCTs ainda mais vulneráveis diante dos conflitos rurais.
“Ataque às casas, às vidas das pessoas, especialmente, às mulheres. Ser expulso de sua própria casa é a violência mais forte que uma pessoa pode sofrer. Vivenciamos um processo sistemático de violações”, lamentou o procurador do Ministério Público Federal da 6ª Câmara, Wilson Rocha Fernandes Assis. Ele destacou que os povos e comunidades são, geralmente, reativos, ou seja, reagem quando têm algum dos seus direitos violados. “É preciso que a gente construa uma agenda proativa para termos avanços”.
Ouça a entrevista com o procurador Wilson Rocha:
Apesar de ainda não ter sido empossado pelo Governo Federal, o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) estava presente no seminário para debater e avaliar ações de uma agenda comum de lutas. A atuação do Conselho é fundamental à implementação efetiva da Política Nacional dos PCTs para que povos e comunidades tradicionais tenham seus direitos garantidos e não violados.
Dentre as principais ações para a Agenda Comum estão:
Garantir a formação de mulheres e jovens é uma das estratégias de fortalecimento das lutas dos povos e comunidades tradicionais. Isso porque a participação deles e delas faz parte do processo de transformação da realidade desses povos. Mesas para o debate específico das demandas de jovens e mulheres, além da troca de experiências, foram destaques durante a programação do seminário.
O Seminário de Povos e Comunidades Tradicionais Protagonistas da sua História foi promovido pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), entidade associada à Rede Cerrado, com o apoio da União Europeia, Fundação Ford e ActionAid.
Os três dias de encontro, marcados pela força do reencontro desses povos, fez brotar, em meios aos intensos e longos debates, aos tambores e às lágrimas, o sentimento de pertencimento e fortalecimento da caminhada. Povos e comunidades tradicionais seguem lado a lado, de mãos dadas, porque entendem que a luta não é isolada. A luta é comum. É de todas e todos.
“Gritamos sobre todas as ameaças que sofremos”. Leia a Carta de Monte Alegre.
“O momento que a gente vive hoje, se tivermos sozinhos, nós não vamos avançar. A luta da quebradeira de coco não é diferente da luta dos povos de terreiro, que não é diferente da luta dos caiçaras e nem das benzedeiras ou dos faxinalenses. Todas as lutas são iguais”, destaca Kátia Favilla, secretária executiva da Rede Cerrado.
Confira algumas imagens do Seminário Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais