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Carta dos Povos do Cerrado à União Europeia

20 de setembro de 2022 - Nota Pública

Caros membros do Conselho, Comissão e Parlamento da União Europeia,Nós, os Povos do Cerrado Brasileiro e as organizações que os representam e apoiam, nos dirigimos a todas as instituições da União Europeia que negociam a proposta de Regulação sobre Produtos Livres de Desmatamento.

Primeiramente, permita-nos apresentar onde vivemos: O Cerrado é um bioma brasileiro que cobre um território equivalente às superfícies somadas da França, Espanha, Alemanha, Itália, Portugal, Dinamarca, Holanda e Bélgica, onde vivem mais de 25 milhões de pessoas. Ele abrange mais de 27 tipos de fitofisionomias naturais, sendo a maior parte campos e savanas. É um bioma extremamente biodiverso reconhecido como um hotspot planetário, que contempla mais de 5% da biodiversidade mundial, com mais de 12.000 espécies de plantas nativas e alto nível de endemismo.

O Cerrado tem importantes contribuições para o equilíbrio climático regional e global devido a seus estoques de carbono. No Cerrado se encontram as nascentes de 8 das 12 principais bacias do Brasil, o que o torna fundamental para a disponibilidade hídrica nacional por meio de seus rios e aquíferos. Sendo o bioma mais antigo do país, Cerrado tem um valor intrínseco claro; mas além disso, ele tem um relevante papel no suporte a outros ecossistemas do Brasil e da América Latina, como a Amazônia, o Pantanal e o Chaco, dando origem a áreas de transição entre biomas que são ricas em sociobiodiversidade e fundamentais para o equilíbrio ambiental de todo o continente.

Neste bioma crítico para o meio-ambiente local e global, vivemos nós, os povos do Cerrado, atuando decisivamente na proteção desta vegetação nativa. Somos comunidades tradicionais, incluindo povos originários, indígenas, quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu, vazanteiros, de fundo e fecho de pasto; e somos também agricultores familiares e muitos outros grupos que, com nossos meios de vida e identificação com nossos territórios, nos tornamos protagonistas da conservação da vegetação nativa e produção de alimentos locais, saudáveis e de qualidade para o consumo humano. Apesar disso, mais da metade da vegetação nativa do nosso bioma já foi destruída.

Nosso meio de vida tem sido cada vez mais afetado pela expansão intensa de determinados cultivos agrícolas exportados e consumidos pela indústria e população da União Europeia. Essa expansão das áreas agrícolas sobre a vegetação nativa atende a crescente demanda de exportação e contribui  para a alta rentabilidade do desmatamento, o que, além de gerar degradação ambiental, também acarreta impactos sociais por meio da grilagem de terras, desrespeito a territórios tradicionais e fragilização de sistemas tradicionais de produção de alimentos.

Um exemplo simbólico deste processo é a soja, que é o produto importado pela União Europeia com maior pegada de desmatamento, ou seja, que mais induz o desmatamento em suas áreas de produção. Quase 15% da soja importada pela União Europeia é produzida no Cerrado, que concentra 65% da soja associada ao desmatamento. Nesse sentido, o que ocorre nos nossos territórios é diretamente influenciado pelas decisões tomadas em Bruxelas.

Reconhecemos os esforços da União Europeia por elaborar regras que protejam a sociobiodiversidade do nosso planeta, dissociem o consumo Europeu da destruição ambiental e, consequentemente, tornem o desmatamento menos rentável e atrativo nos fluxos internacionais de comércio. Reconhecemos também que tais regras têm o potencial de aportar importantes contribuições para a segurança alimentar local e global, a preservação de ecossistemas naturais e a proteção aos direitos humanos e aos territórios tradicionais.

Contudo, para atingir este objetivo e para garantir que a legislação seja realmente eficaz em conter o desmatamento induzido pelo comércio internacional, é importante apontar para elementos críticos que devem estar presentes na referida regulação. São eles:

  1. Inclusão de ecossistemas naturais74% do bioma Cerrado permaneceriam desprotegidos com a definição estrita de ecossistemas florestais da FAO (em um bioma com menos de 3% da sua superfície sob proteção estrita). Uma legislação que protegeria apenas florestas, deixaria a maior parte dos remanescentes do Cerrado desprotegidos, e consequentemente aumentaria ainda mais a pressão de expansão da soja e destruição sobre esses remanescentes e sobre as populações tradicionais que neles e deles vivem. Além disso, a diversidade de fitofisionomias do Cerrado e sua alta variabilidade espacial dificultam a aplicação desta definição, baseada em limiares de altura e cobertura da vegetação. Isso levaria a dificuldades de implementação da regulação e poderia ensejar brechas no seu cumprimento aumentando ainda mais a pressão sobre povos e comunidades tradicionais, tendo em vista a crescente expansão de soja e sua pegada de desmatamento nos territórios. Portanto, incluir ecossistemas savânicos e campestres no escopo da regulação é crucial para evitar impactos colaterais massivos sobre ambientes e populações, e para garantir a eficácia da proposta europeia, além de tornar a legislação mais robusta, mais fácil de ser implementada e com sistemas de monitoramento menos custosos.
  2. Transparência até a origem → Reforçamos a importância de exigir  a rastreabilidade até a origem das unidades produtivas[1], com seus limites devidamente georeferenciados. Esse nível de transparência é um grande aliado das comunidades tradicionais para assegurar o respeito aos seus territórios, e também a todas as áreas protegidas, bem como uma oportunidade para garantir legalidade nas cadeias produtivas. Portanto, o rastreamento até a origem é uma forma de incentivar o respeito às comunidades locais e proteger seus territórios tradicionais.
  3. Respeito aos direitos humanos → É importante reconhecer que sociedade e ambiente são duas faces da mesma moeda. Para se atingir sustentabilidade e conservação ambiental, é necessário nutrir e apoiar as comunidades locais que dependem e cuidam desses ecossistemas. Nós, os Povos do Cerrado, somos extremamente vinculados aos nossos territórios, e oferecemos um modo distinto das grandes plantações de commodities, pautados numa relação de proximidade com o território e interdependência entre todos os seres vivos, produzindo alimentos saudáveis, sem agrotóxicos e respeitando os rios. Portanto, proteger os direitos humanos das comunidades locais, por meio da proteção do direito à vida, à cultura, às formas de organização social e ao território, é proteger a vegetação nativa que os cerca. Nesse sentido, não menos importante, merece atenção que o respeito aos direitos humanos também se materializa pela consulta livre, prévia e informada das comunidades, conforme estabelecido pela Convenção 169 da OIT.

Com base no exposto acima, esperamos que vocês, caros membros do Conselho, Comissão e Parlamento da União Europeia, nos apoiem em nossa luta de cuidar das pessoas que protegem a fauna e a flora da nossa casa coletiva, que é a Terra. Que o comércio internacional possa ser o indutor de transformações para uma produção de alimentos mais justa, saudável e livre de desmatamento!

Atenciosamente,

Rede Cerrado

Letter from the Peoples of the Cerrado to the European Union

Dear Members of the Council, Commission and Parliament of the European Union,

We, the Peoples of the Brazilian Cerrado and the organizations that represent and support them, address all the institutions of the European Union which are negotiating the proposal for a Regulation on Deforestation- and Conversion-Free Products.

First, allow us to present where we live: The Cerrado is a Brazilian biome that covers a territory equivalent to the combined areas of France, Spain, Germany, Italy, Portugal, Denmark, the Netherlands and Belgium, where more than 25 million people live. It encompasses more than 27 natural types of vegetation, most of which are grasslands and savannas. It is an extremely biodiverse biome recognized as a planetary hotspot, which includes more than 5% of the world’s biodiversity, with more than 12,000 species of native plants and a high level of endemism.

The Cerrado has important contributions to regional and global climate balance due to its carbon stocks. The headwaters of 8 of the 12 main basins in Brazil are located in the Cerrado, which makes the biome a key region for the national water availability through its rivers and aquifers. As the oldest biome in the country, Cerrado has clear intrinsic value; but in addition, it also has an important role in supporting other ecosystems in Brazil and Latin America, such as the Amazon, the Pantanal and the Chaco, hosting the transition areas between biomes that are rich in sociobiodiversity and fundamental for environmental balance across the continent.

In this critical biome for the local and global environment, we, the peoples of the Cerrado, live, act decisively in the protection of this native vegetation. We are traditional communities, including native peoples, indigenous peoples, quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, babassu coconut breakers; and we are also family farmers and many other groups that, with our livelihoods and identification with our territories, have become the protagonists in the conservation of native vegetation and the production of local, healthy and quality food for human consumption. Despite this, more than half of the native vegetation of our biome has already been destroyed.

Our livelihoods have been increasingly affected by the intense expansion of agricultural crops exported and consumed by the industry and population of the European Union. This expansion of agricultural areas over native vegetation meets the growing demand for exports and contributes to the high profitability of deforestation and conversion of native vegetation, which generates environmental degradation and also causes social impacts through land-grabbing, disrespect for traditional territories and weakening traditional food production systems.

A symbolic example of this process is soy, which is the product imported by the European Union with the largest deforestation and conversion footprint; that is the product that induces deforestation and conversion in its production areas the most. Almost 15% of the soy imported by the European Union is produced in the Cerrado, which concentrates 65% of the soy associated with deforestation and conversion. In this sense, what happens in our territories is directly influenced by the decisions taken in Brussels.

We recognize the efforts of the European Union to develop rules that protect the socio-biodiversity of our planet, decouple European consumption from environmental destruction and, consequently, make deforestation and conversion less profitable and attractive in international trade flows. We also recognize that such rules have the potential to make important contributions to local and global food security, the preservation of natural ecosystems and the protection of human rights and traditional territories. However, to achieve this objective and to ensure that legislation is really effective in containing deforestation and conversion induced by international trade, it is important to point to critical elements that must be present in the aforementioned regulation. Are they:

  1. Inclusion of natural ecosystems74% of the Cerrado biome would remain unprotected under FAO’s strict definition of forest ecosystems (in a biome with less than 3% of its surface under strict protection). A legislation that would protect only forests, would leave most of the Cerrado remnants unprotected, and consequently would further increase the pressure of soy expansion and destruction on these remnants and on the traditional populations that live in them and on them. Furthermore, the diversity of Cerrado vegetation types and its high spatial variability make it difficult to apply this definition, based on height and vegetation cover thresholds. This would lead to difficulties in implementing the regulation and could give rise to gaps in its compliance, increasing even more the pressure on traditional peoples and communities, in view of the growing expansion of soy and its deforestation and conversion footprint in the territories. Therefore, including savanna ecosystems and rural areas within the scope of regulation is crucial to avoid massive collateral impacts on environments and populations, and to ensure the effectiveness of the European proposal, in addition to making legislation more robust, easier to implement and with less costly monitoring systems.
  2. Transparency to the origin → We reinforce the importance of demanding traceability to the origin of production units, with their limits properly georeferenced. This level of transparency is a great ally of traditional communities to ensure respect for their territories, and also for all protected areas, as well as an opportunity to guarantee legality in production chains. Therefore, tracing back to origin is a way to encourage respect for local communities and protect their traditional territories.
  3. Respect for human rights → It is important to recognize that society and environment are two sides of the same coin. To achieve sustainability and environmental conservation, it is necessary to nurture and support the local communities that depend on and care for these ecosystems. We, the Peoples of the Cerrado, are extremely linked to our territories, and we offer a different way from the large commodity plantations, based on a relationship of proximity with the territory and interdependence between all living beings, producing healthy food, without pesticides and respecting the rivers. Therefore, protecting the human rights of local communities, through the protection of the right to life, culture, forms of social organization and territory, is to protect the native vegetation that surrounds them. In this sense, not least, it deserves attention that respect for human rights is also materialized by the free, prior and informed consultation of communities, as established by ILO Convention 169.

Based on the above, we hope that you, dear members of the Council, Commission and Parliament of the European Union, will support us in our struggle to care for the people who protect the fauna and flora of our collective home the Earth. May international trade be the catalyst for transformations towards fairer, healthier and deforestation- and conversion-free food production!

Yours sincerely,

Cerrado Network

 

[1] Enfatizamos que esse rastreamento significa certificar-se que os produtores na origem estão livres de desmatamento, o que é diferente e desvinculado de manter a identidade dos grãos e/ou segregar a produção agrícola em todas as etapas do processo de exportação.

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